Hoje não vou falar de religião, apesar de acreditar que cada vez mais precisamos de ter mais fé. Ter fé nas pessoas, ter fé na verdade, ter fé na seriedade, ter fé nos políticos e ter fé nos decisores. Esta fé tem, então, a ver com os “Cardeais”.
Relativamente aos “Pontos [de conexão]”, talvez importe perceber o que são e para que servem. É um ponto físico onde se pode aceder livremente. Pode ser um local público ou privado, onde se conectam várias linhas e vários utilizadores, de forma grátis ou pagando para tal.
Isto tudo para dizer que quando juntamos os Pontos e os Cardeais, temos, “pontos cardeais” que são os principais pontos orientadores das coordenadas geográficas, logo, são os principais pontos de referência, também, para a localização sobre a superfície terrestre.
Aparentemente nada disto tem a ver com transporte ferroviário de mercadorias, mas, desculpem-me, eu acho que tem muito. Porque sem “pontos” não é possível construir uma rede, e sem orientação não é possível construir uma rede ferroviária orientada para as necessidades da economia.
Quer se queira quer não, ninguém pode negar que o transporte ferroviário foi estruturante de regiões, de países e até do próprio planeta. Foi fundamental para guerras e para a PAZ, foi fundamental para fazer chegar bens e mercadorias de forma mais democrática e a igual preço a todas as pessoas, foi fundamental para retirar milhões de pessoas da miséria ao permitir-lhes o acesso a trabalho, educação e riqueza nas mesmas condições que a algumas classes predominantes e foi fundamental para que bens produzidos num continente chegassem de forma competitiva a um outro continente por mais longínquo que fosse. Se o transporte marítimo une continentes e civilizações, o transporte ferroviário une países e pessoas dentro desses continentes.
Da mesma forma que os “pontos” marítimos são fundamentais para ligar continentes, também os “pontos” terrestres são fundamentais para ligar pessoas, cidades, regiões e países. Nesta perspetiva, é fundamental que os “pontos” marítimos se sirvam dos “pontos” terrestres para alargar a sua área de influência terrestre e conseguir chegar onde os navios não chegam, aproximando o mar da terra de forma equitativa para todos. Hoje deparamo-nos com uma enorme mobilidade das mercadorias e, por isso mesmo, são necessários pontos onde possam migrar entre modos de transportes, entre continentes, entre pessoas e entre países.
É, assim, com alguma estupefação que vejo em alguma comunicação social que este Terminal [RodoFerroviário da Bobadela] será (hipoteticamente) desativado, num primeiro momento em nome das Jornadas da Juventude 2022 (…), mas agora também em nome da qualidade de vida das populações e até de uma eventual ciclovia que ligará Vila Franca Xira ao Guincho.
Relembrando um pouco a história e a importância do CF. Por exemplo, Chicago é o que é atualmente [um importante polo para a indústria das telecomunicações, transporte e infraestrutura] talvez porque por volta do ano de 1855 se tornou no centro ferroviário mais movimentado do mundo, e o mais importante do país. E como aconteceu?, aconteceu porque ali foi criado um ponto de triagem de comboios para “shunting” de cargas e material para toda a América.
Eis que chego, assim, ao Terminal RodoFerroviário da Bobadela. Ainda recentemente foi possível ler na imprensa portuguesa que este é provavelmente o maior Terminal RodoFerroviário da PenÍnsula e que está muito mal explicado o sucesso do transporte de mercadorias por via ferroviária em Portugal neste século.
Foi alavancado nele, que o Porto de Sines conseguiu alargar o seu hinterland cobrindo atualmente todo o território nacional e algumas zonas de Espanha; foi ainda através deste Terminal que se desenvolveram projetos ferroviários muito interessantes, nomeadamente os projetos de Sines e Elvas, da “Saica” (Saragoça) e ainda o famoso comboio da Alemanha. E igualmente a troca de cargas entre os Portos de Lisboa e Leixões, complementando estes, mas ao mesmo tempo agilizando e minimizando as ineficientes infraestruturas ferroviárias de ambos, mas potenciando o seu hinterland.
É, assim, com alguma estupefação que vejo em alguma comunicação social que este Terminal será (hipoteticamente) desativado, num primeiro momento em nome das Jornadas da Juventude 2022 (adiadas por motivo da Covid-19 para 2023), mas agora também em nome da qualidade de vida das populações e até de uma eventual ciclovia que ligará Vila Franca Xira ao Guincho.
Ora, quer-me parecer que nada disto obrigaria à deslocalização do maior Terminal RodoFerroviário da Península Ibérica, promovendo desemprego, restrição a alguma atividade do Porto de Lisboa e anulando a possibilidade dos cidadãos da maior região populacional do país terem acesso a bens e mercadorias da mesma forma competitiva que os restantes portugueses.
Quando olhamos para aquela zona, não vislumbramos zonas habitacionais e a construção da referida ciclovia não impediria a atividade que aí ainda hoje se desenvolve. Acresce referir que em muitas cidades Europeias este tipo de atividade, que se desenvolve na sua maioria em zonas ribeirinhas, as pessoas vivem harmoniosamente com o Porto, com a atividade deste, deslocando-se em bicicleta entre as zonas habitacionais e o trabalho, sem com isso deixarem de ser mais ou menos amigos do ambiente. Aliás, se formos ver, a taxa de “ciclistas” nestes países é incomensuravelmente superior à de Portugal/Lisboa.
A estupefação ainda é maior quando ouvimos falar que a alternativa seria a zona da Plataforma Logística de Lisboa Norte, onde se prevê um investimento de cerca de 370 milhões de euros, que ocupa uma área de 100 ha entre a Estação Ferroviária de Carregado e a Estação Ferroviária de Castanheira do Ribatejo e que sabemos de antemão que não é suficiente, pois estamos a falar de transferir 400 ha (não apenas da Bobadela, mas de concelhos limítrofes a Lisboa) para uma área de 100 ha.
Falamos ainda de um acréscimo de cerca de 30 km entre o Porto de Lisboa e Bobadela ou entre o Porto de Lisboa e o Carregado, e de outros tantos km entre o Porto de Sines e Bobadela (sem 3.ª travessia do Tejo) com as consequentes emissões de CO2 adicionais, preço, tempo, desemprego, flexibilidade e (in)eficiência.
Já aguardo um novo anúncio acerca desta futura alternativa e, fazendo futurologia, acho que iremos ser brindados com duas ou três localizações, onde será muito difícil promover o “modal Shift” para uma solução mais sustentável. Espero, no entanto, estar redondamente enganado.
Estando no ano da Ferrovia e deixando de lado qualquer preconceito ideológico, gostava que todos os decisores refletissem sobre esta eventual mudança, pois a mesma, aparentemente, impactará seriamente na vida das pessoas, sabendo antecipadamente quem vai pagar os custos adicionais finais: o consumidor, claro.
Sou de opinião que é sempre possível compatibilizar qualidade de vida com trabalho, com competitividade e, acima de tudo, com a manutenção da atividade industrial.
ANTÓNIO NABO MARTINS
Especialista em Ferrovia
Verdade nua e crua