Fórum África-China
O Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China publicou no passado 5 de setembro o Plano de Cooperação China-África para o período 2025-2027[i], um documento elaborado no âmbito do FOCAC (Forum on China-Africa Cooperation), onde se inclui 222 vezes a expressão “os dois lados” identificados como “os Chefes de Estado, de Governo e delegações da China e de 53 países africanos e o Presidente da Comissão da União Africana”.
Segundo a China, os 53 países africanos, isto é, o “outro lado da mesa”, estão satisfeitos com a cooperação no âmbito da Iniciativa Faixa e Rota (“Belt and Road”) onde estava incluída a Rota da Seda Marítima que liga a China ao Sudeste Asiático, Sul da Ásia, Médio Oriente e África, facilitando o comércio através de portos e infraestruturas marítimas.
Ainda segundo a China essa satisfação resulta das suas orientações políticas de cooperação:
- “A China não interferirá na exploração pelos países africanos de vias de desenvolvimento que se adequem às suas condições nacionais;
- A China não interferirá nos assuntos internos dos países africanos;
- A China não imporá a sua vontade aos países africanos;
- A China não associará condições políticas à assistência prestada a África; e
- A China não procurará ganhos políticos unilaterais na cooperação em investimento e financiamento com África”.
Não sabemos qual a opinião oficial do “outro lado da mesa”. Em princípio todos participaram do brinde do presidente chinês Xi Jinping no banquete de boas-vindas: “À prosperidade da China e dos países africanos e ao bem-estar dos nossos povos”. Essa expressão marcou o encontro e o texto do documento já referido onde se lê:
- “A China, o maior país em desenvolvimento, está comprometida em prosseguir com uma abertura de nível superior para promover um desenvolvimento de alta qualidade, e está a esforçar-se para se tornar num país mais forte e revitalizar a nação chinesa em todos os aspetos, através da modernização chinesa.”
- “O lado africano valoriza altamente a Terceira Sessão Plenária do 20.º Comité Central do Partido Comunista da China, realizada em julho deste ano, e acredita que os planos sistemáticos traçados na sessão para aprofundar ainda mais as reformas, promovendo a modernização chinesa, trarão mais oportunidades para os países de todo o mundo, incluindo os países africanos.”
Ou seja, o que é bom para a modernização da China será bom para a “modernização” dos países Africanos seus parceiros. Uma posição típica de um imperialismo moderno que se afasta do “soft power” que marcava a “rota da seda”.
Angola e China
Entre os 53 países africanos estavam representantes de Angola (o Presidente da República não esteve presente), país onde têm sido identificados aspetos positivos e negativos da “parceria” com a China. Por um lado, é comum referir-se que “a China foi a única opção que Angola teve para fazer a reconstrução nacional de forma rápida de acordo com a estratégia que definiu na altura”, mas, por outro, também há quem opine que “foi uma estratégia típica de um país subdesenvolvido comprando chave na mão e descurando a qualidade e as suas capacidades para o futuro“[ii].
A dívida de Angola à China é hoje de 17 mil milhões de dólares norte-americanos, representando cerca de 40% de toda a dívida externa ou cerca de 20% do PIB de 2023.[iii] Um credor desse montante não pode deixar de estar atento (pelo menos) aos assuntos internos de Angola.
Angola e China assinaram durante o FOCAC três memorandos de entendimento no sector dos Transportes que, afinal, refletem a continuidade de uma estratégia de cooperação com 40 anos:
- O primeiro, com a China Communications Construction Company (CCCC) Limited[iv] destinado à elaboração dos estudos de viabilidade técnica e financeira para o Sistema Integrado do Metro de Superfície de Luanda (investimento total avaliado em 2,3 mil milhões de Euros). No entanto, a empreitada de conceção, construção, implementação, fornecimento de equipamentos e tecnologia já tinha sido entregue à Siemens Mobility.
- O segundo, assinado com a China Road & Bridge Corporation (CRBC), destina-se ao desenvolvimento do Corredor Norte, e prevê a construção, manutenção e operação de uma linha férrea que ligará o Terminal de Águas Profundas do Caio, em Cabinda, à RDC e ao Congo.
- O terceiro memorando é uma parceria com a Huawei e visa a modernização tecnológica e a digitalização do sector dos transportes em Angola.
São três projetos de que nos interessa particularmente o segundo, o Porto do Caio em Cabinda, por ser um projeto portuário apresentado sucessivamente nos anos de 2005, 2011, 2015 e finalmente em 2017 como incluindo “um terminal de contentores de águas profundas (-16 metros) com 1.130m de ancoradouro com capacidade para receber alguns dos maiores navios do mundo”. Ponte e molhe de acesso ao terminal portuário com 2 km de comprimento em fase adiantada de construção. O único investidor é o Estado Angolano.
O Projeto, agora acrescentado com uma ligação ferroviária à República do Congo e à República Democrática do Congo, tem um fundamento estratégico muito estreito e uma base económica e financeira por demonstrar. De notar que 136 km a Norte do Caio se situa o Terminal de Contentores de Ponta Negra (Concessão à Africa Global Logistics, do Grupo MSC) e 60 km a Sul está em início de construção o Terminal de Contentores de Banana, na Foz do Rio Congo (um projeto da DPW Dubai Ports World – futura concessionária – com suporte financeiro da DPW e da British International Investment (BII)[v]). Incrivelmente, todos pretendem ser centros de distribuição (hubs) para os países vizinhos.

Cimeira de Negócios EUA-África
Na mesma semana em que decorria o FOCAC, os EUA e Angola acordaram a realização, em 2025, em Luanda, da Cimeira de Negócios Estados Unidos-África. Segundo comunicado da Embaixada de Angola em Washington, “a cimeira terá um foco continental, entre África e os Estados Unidos da América. Angola, como país anfitrião, vai apresentar o seu potencial industrial, desde energia, infraestrutura, agricultura e tecnologia, para destacar as oportunidades de investimento e promover o desenvolvimento sustentável”. A abordagem dos EUA foca-se em investimentos privados.
Angola e EUA[vi]
Os investimentos privados dos Estados Unidos em Angola têm-se concentrado principalmente no sector de petróleo e gás. Angola anunciou que deixaria a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em dezembro de 2023, alegando que os cortes de produção anunciados por aquela organização não estavam alinhados com os interesses nacionais. Os EUA encararam com cautela a saída de Angola da OPEP; embora sendo uma oportunidade de fortalecer as relações bilaterais essa saída tem o potencial de afetar o mercado global de petróleo.
O Departamento de Estado dos EUA reconhece que tem algumas lacunas no conhecimento de Angola: “Acredita-se que Angola possua depósitos substanciais de minerais críticos ainda inexplorados, e o projeto do Corredor do Lobito facilitará o transporte de minerais da República Democrática do Congo até ao porto de Lobito. Espera-se que o Corredor do Lobito também estimule outros sectores económicos, especialmente a agricultura. Atualmente, Angola é um importador líquido de produtos alimentares, e o aumento da produção agrícola é um pilar-chave do programa de diversificação económica.”

A cooperação entre a China e Angola começou a ganhar força a partir da década de 1980 e intensificou-se depois do final da guerra civil, em 2002. Pelo contrário, os EUA só reconheceram o governo de Angola em 1993.
Os EUA revelam alguma dificuldade em perceber a geografia e a geopolítica na região. O Corredor do Lobito como conceito (rota estratégica) localiza-se entre o Porto do Lobito e Kolwezi (capital da província de Lualaba, na República Democrática do Congo que é o centro da mineração de cobre e cobalto). Mas o Corredor está partido em dois na fronteira (Lobito-Luau e Dilolo-Kolwezi), sendo que o primeiro segmento foi concessionado pelo Governo de Angola ao consórcio Trafigura + Mota Engil + Vecturis e o segundo é gerido pela Société Nationale des Chemins de Fer du Congo (SNCC), a empresa ferroviária estatal congolesa. A SNCC é responsável pela operação do transporte ferroviário a partir da fronteira até às regiões mineiras.
O conceito de Corredor do Lobito foi “vendido” aos EUA como uma infraestrutura única gerida pelo consórcio liderado pela Trafigura. De facto, a Trafigura é uma das maiores traders globais de matérias primas e atua na RDC como comprador de cobre concentrado e cobalto, de que vende uma parte significativa á China. A Trafigura não é uma empresa mineira, a mineração e o processamento de cobre e cobalto na RDC são dominados por empresas Chinesas. A própria Ivanhoe Mines, empresa Canadiana, a única que até agora afirmou apostar no Corredor do Lobito para a sua cadeia logística associada à mina de Kamoa-Kakula, possui capital chinês.
Não foi Angola que afastou a China do projeto do Corredor do Lobito; foi a China que encontrou na RDC, Zâmbia e Tanzânia condições políticas, económicas e logísticas mais favoráveis – o Corredor Norte-Sul consubstanciado no Tazara (Tanzânia – Zâmbia Railway Authority). A RDC e a Zâmbia assinaram protocolos com o Governo de Angola no âmbito do Corredor do Lobito, mas não encontraram apoio financeiro para os investimentos necessários (reconstrução de troços da linha ferroviária Dilolo-Kolwezi e nova linha de ligação entre Angola e a Zâmbia) ou os Governos desses dois países têm interesses (ocultos) distintos do Governo de Angola.
Há quem considere que o tempo em trânsito entre Kolwezi e Lobito poderá vir a ser inferior em 8 dias ao tempo entre Kolwezi e Dar-es-Salaam, esquecendo-se que o tempo de trânsito tem de ser contado até ao destino final na China. O Corredor foi um conceito estratégico desenvolvido pelo Rei Leopoldo II da Bélgica no final do século XIX, tendo em vista as necessidades em matérias primas da Revolução Industrial na Europa. Hoje, o objetivo é transportar até à China pelo que há que contar com o tempo de viagem marítima o que a anula a vantagem do Porto do Lobito (situado na Costa Ocidental).
No passado dia 4 de Setembro, a China, a Tanzânia e a Zâmbia assinaram um acordo inicial para reabilitar a linha do Tazara, assinado em Pequim e testemunhado pelo Presidente chinês Xi Jinping, juntamente com os Presidentes da Tanzânia e da Zâmbia, que estavam na cidade para o Fórum de Cooperação China-África.[vii]
Ainda na envolvente do Corredor do Lobito há que considerar que o Porto do Lobito foi concessionado em duas fatias: o Terminal Polivalente de Contentores e Carga Geral que ficou com a Africa Global Logistics (AGL), anteriormente conhecida como Bolloré Africa Logistics, empresa que foi adquirida pelo grupo suíço MSC (Mediterranean Shipping Company) em 2022, e o Terminal de Minério que foi englobado na concessão do Corredor do Lobito (consórcio acima referido liderado pela Trafigura). A MSC é um operador global com uma postura neutra em relação à China e aos EUA e que tem a Trafigura como um cliente importante no transporte de cargas em contentores em várias regiões do mundo (onde se inclui o transporte de concentrado de cobre).
A China teve no passado a ambição de controlar toda a infraestrutura ferroviária e portuária no Corredor do Lobito, mas a partir de 2020 colocou travões ao financiamento face à desaceleração da sua economia e a preocupações sobre as dificuldades para os países africanos pagarem os empréstimos concedidos.
TUDO ESTÁ POR DECIDIR
No momento presente, China e EUA defrontam-se em África com muito vigor e diferentes estratégias.
A China segue uma abordagem centralizada, impulsionada principalmente por empresas estatais e por uma política governamental coordenada. As empresas estatais chinesas envolvidas em projetos de infraestrutura, mineração, energia e telecomunicações em África estão alinhadas com os objetivos geoestratégicos de Pequim.
Os EUA, por outro lado, adotam uma abordagem mais descentralizada, promovendo a participação de empresas privadas, tanto americanas como globais, no desenvolvimento de projetos em África. As empresas americanas tendem a operar com maior independência, seguindo as suas próprias estratégias de negócio, com o apoio do governo dos EUA em termos de garantias financeiras e apoio político.
No caso de Angola, e de muitos outros países africanos, a competição entre China e EUA não apresenta ainda um vencedor claro. Cada potência oferece vantagens distintas. O futuro de depende, em grande parte, das escolhas estratégicas que o país fizer (ou não fizer) em relação às ofertas efetivas que vier a receber, numa altura em que o continente africano se torna cada vez mais um campo de disputa geopolítica entre as duas maiores economias do mundo.
O caso de Angola mostra apenas que tudo está por decidir.
[i] https://www.mfa.gov.cn/eng/xw/zyxw/202409/t20240905_11485719.html
[ii] Artigo no Jornal Expansão com o título “Corrupção e fraca qualidade das obras são manchas nos empréstimos da China” que cita vários especialistas nacionais.
[iii] https://ugd.minfin.gov.ao/PortalUGD/#!/sala-de-imprensa/artigos/13143/a-importancia-da-china-na-divida-soberana-de-angola
[iv] Empresa Chinesa que detém 32,41% do capital da Mota Engil.
[v] https://gbc1.net/index.php/2024/08/23/bii-and-dp-world-partner-to-develop-container-port-in-drc/
[vi] “2024 Investment Climate Statements: Angola”, U.S. Department of State.
(https://www.state.gov/reports/2024-investment-climate-statements/angola/)
[vii] A China apoiou inicialmente a construção da ferrovia Tazara (Tanzânia-Zâmbia Railway Authority) no final da década de 1960. O acordo formal para o financiamento e a construção da ferrovia foi assinado em 1967, e a construção começou em 1970. A ferrovia foi concluída em 1975, com um financiamento significativo e apoio técnico da China.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos