O transporte é em si mesmo uma operação cheia de perigos. É responsabilidade de todos os intervenientes adotar as medidas de prevenção que possam reduzir o risco a níveis aceitáveis ou negligenciáveis, critérios nobres que poderão ser distintos em função dos interesses envolvidos…
O risco zero não existe e por isso é importante encontrar os consensos ou as convergências que estabeleçam a equidistância e razoabilidade que, quando possível, permita a realização das diferentes operações logísticas, mantendo-as tão simples quanto possível e a custos tão baixos quanto razoável, nunca descurando os princípios basilares da segurança e da sustentabilidade ambiental.
A regulamentação aplicada ao transporte de mercadorias perigosas, tendo como orientação as Recomendações para o transporte de mercadorias perigosas da Organização das Nações Unidas (Regulamento Tipo) conhecidas como “Livro Laranja”, apesar dos esforços de harmonização modal iniciados no último quartel do Século XX, identifica os perigos e define os critérios para a classificação das matérias e objetos, na ótica do perigo que podem apresentar no transporte, e define as regras aplicadas ao acondicionamento, sinalização e informação/documentação que deve acompanhar o transporte.
Contudo, no transporte marítimo, persistem algumas regras específicas que, dada a complexidade, fundamentação técnica e coerência, são difíceis de entender, de implementar e em nada contribuem para a segurança do transporte, pois podem facilmente conduzir ao erro ou à não declaração dos perigos.
Refiro em particular as regras relativas à segregação entre mercadorias classificadas como perigosas, que se encontram prescritas no Capítulo 7.2 do Código IMDG (International Maritime Dangerous Goods Code) e que poderão contemplar casos particulares ou especiais identificados para cada produto na Lista de Mercadorias Perigosas (Parte 3) do referido Código.
No transporte marítimo, só poderão (eventualmente) ser transportadas na mesma unidade de transporte de carga (contentor ou veículo) as mercadorias cujos perigos principal e secundário em relação ao(s) perigo(s) de outras cargas sejam assinalados com a letra “X”, em conformidade com o quadro de segregação do Código IMDG.
Este quadro parece ignorar vários princípios, nomeadamente no que respeita às exigências/requisitos de embalagem, que (se cumpridos) deverão ser um garante de uma maior segurança do transporte. Além disso, obriga à segregação de cargas em casos que parecem difíceis de compreender.
Quais os critérios que estão na origem da regra que impossibilita serem transportados na mesma unidade de transporte líquidos inflamáveis (classe 3) e gases inflamáveis (classe/divisão 2.1)? O perigo é o mesmo (inflamabilidade/combustão) ainda que o risco possa ser diferente, não se vislumbram casos de efeitos sinérgicos ou potenciadores, ou seja, em que a soma das consequências ou da probabilidade de ocorrência de incidentes do conjunto seja maior que a soma das partes.
Mesmo o transporte aéreo, normalmente tido como mais restritivo, tem regras de segregação menos limitativas [que o Código IMDG]
Mais caricato ainda, é não poderem ser transportados conjuntamente gases asfixiantes e líquidos inflamáveis. Por exemplo, tambores com gasolina (UN 1203, classe 3) não podem ser carregados no mesmo contentor com caixas com extintores (UN 1044, classe/divisão 2.2)!!
E se tiverem que ser transportados resíduos hospitalares, como os resultantes dos teste de diagnóstico à COVID 19 (UN 3291, classe 6.2) não poderão ser acondicionados no mesmo que um gel desinfetante com base alcoólica (por exemplo, UN 1170, classe 3).
Mas um “X” no referido quadro não é uma garantia de possibilidade de carregamento em comum. A coluna 16b (Segregação) da Lista de Mercadorias Perigosas deve ser sempre consultada para verificar se existem regras particulares a serem aplicadas, por exemplo em relação aos 18 grupos de segregação previstos no Código IMDG:
Esta é uma abordagem exclusiva do Código IMDG, cuja pertinência e eficácia deveria ser discutida no Maritime Safety Committee (MSC) da Organização Marítima Internacional (OMI/IMO).
Mesmo o transporte aéreo, normalmente tido como mais restritivo, tem regras de segregação menos limitativas. Por exemplo, podemos ter num avião cargueiro um jerricane de 30 l de ácido sulfúrico (UN 1830, classe 8) ao lado de 1 tambor com 50 kg de soda caustica (UN 1823, classe 8) mas não podemos ter estes dois produtos num contentor de transporte marítimo pois há uma regra particular aplicada à soda cáustica que o impossibilita (SG 35 – Estivar “separado de ácidos).
Mais restrições e maior complexidade concorrem para o erro e a omissão e podem estar na origem de acidentes graves que poderiam ser evitados. O medo da mudança e o comodismo de manutenção de um sistema não podem servir de alibi para que tudo fique na mesma, quando a necessidade de alteração é evidente e as propostas possam ser tecnicamente justificadas.
Seguramente.
JOÃO CEZÍLIA
Especialista em transporte de mercadorias perigosas