A bíblia da aviação civil internacional, comercial ou não, é a convenção de Chicago, assinada naquela cidade em 1944, a qual reafirma, no seu primeiro artigo, a soberania completa e exclusiva dos Estados contratantes sobre o espaço aéreo que cobre o seu território, conceito que, se quisermos ir ao detalhe, até precede a Convenção e se pode considerar costume internacional.
Se por um lado a soberania do espaço aéreo se mantém ao longo dos tempos e não é questionada, também pode ser notado que este conceito, e a forma como ele é gerido pela comunidade internacional, tem evoluído podendo qualificar-se o tratamento da soberania do espaço aéreo como fluído desde 1944 até aos dias de hoje.
Destarte, a análise qualitativa dos acordos de serviços aéreos demonstra como a esmagadora maioria dos estados foi assumindo posições cada vez mais liberais na troca de direitos comerciais de tráfego aéreo ao longo do tempo, ao ponto de se terem criado relevantes blocos regionais com a correspondente liberalização de direitos de tráfego dentro de cada bloco de forma recíproca, em modelo mais avançado que a simples troca de direitos de forma bilateral. O exemplo máximo deste último caso é, sem dúvida, a criação de um céu único europeu aquando da aprovação do terceiro pacote de liberalização, em 1992, mas os trabalhos desenvolvidos no final do século passado para incluir o transporte aéreo no quadro da Organização Mundial do Comércio e iniciativas regionais de liberalização do transporte aéreo em outras partes do globo, como a ASEAN, não podem ser ignoradas e alteraram o panorama da aviação internacional.
Finalmente, é igualmente essencial referir o acordo de céu aberto entre a Zona de Aviação Comum Europeia e os Estados Unidos da América, o qual, mais que um tratado de quintas liberdades, revela o apetite dos operadores aéreos de cada lado do bloco em explorar comercial o mercado da contraparte.
Todo este trabalho de desenvolvimento e crescimento do transporte aéreo, construído sobre a convenção de Chicago (que nem um direito de passagem à imagem da figura do direito marítimo prevê) não pode ser dissociado do fantástico equilíbrio da Convenção entre provisões imperativas e outras mais abertas que permitiram sempre aos Estados avançar em conjunto, mas de forma independente, no crescimento da aviação. A arte da interpretação da Convenção de Chicago é feita, precisamente, pela compreensão das vantagens e benefícios dos pontos em que aproxima os Estados signatários assim como das margens dadas a estes para se afastarem do que nela está previsto.
…concordo perfeitamente com a aplicação de sanções económicas a um estado que agride militarmente um estado vizinho (…). O que é mais difícil de aceitar (…) é que se remova qualquer consideração de proporcionalidade ou de relevância nas medidas tomadas…
Subitamente, em 2022, a tendência de aprofundamento das relações comerciais no transporte aéreo, transformou-se em arma política a usar na construção de uma nova cortina de ferro no espaço aéreo europeu. Hoje, gerimos um cisma.
No período consequente à invasão da Ucrânia por soldados da Federação Russa, a União Europeia encerrou o espaço aéreo europeu a aeronaves registadas na Rússia, o que na prática representa a proibição de descolagem, aterragem e sobrevoo do território de um Estado membro por aeronaves registadas na Federação Russa ou operadas por operadores Russos (mas não proíbe o voo de passageiros Russos, o que parece ser uma ideia que faz confusão a alguns quadrantes nacionais, em especial quando transportados em aeronaves com menos de 19 passageiros). Adicionalmente, ampliou a proibição de exportação de equipamento que possa ter duplo uso, o que afeta aeronaves e os seus componentes, incluindo aqui também serviços, sendo que já aqui antes nos debruçámos sobre as consequências destas medidas na impossibilidade de recuperação de aeronaves detidas por empresas de locação de aeronaves e que se encontram a operar na Rússia. Às medidas aprovadas, a Federação Rússia retaliou com reciproca proibição.
Note-se que nada disto é propriamente novo. Previamente a União Europeia já havia assumido sanções na utilização de espaço aéreo contra o Afeganistão[i] e a Jugoslávia[ii], assim como variadas proibições à exportação de equipamento para a Rússia após a invasão por esta da Ucrânia. Contudo, nenhuma situação tinha atingido a magnitude das presentes medidas, e o que agora é novidade é que abandonou-se por completo a noção de proporcionalidade, de tal forma que nem a fluidez da Convenção de Chicago consegue comportar as medidas tomadas.
Tenha-se este ponto por claro, concordo perfeitamente com a aplicação de sanções económicas a um estado que agride militarmente um estado vizinho, independentemente dos anos de provocação por terceiros que possam ocorrer antes. O que é mais difícil de aceitar, como qualquer tenista russo proibido de ir a Wimbledon concordará, é que se remova qualquer consideração de proporcionalidade ou de relevância nas medidas tomadas e se vilifiquem inocentes. Tal como a Convenção de Chicago dá espaço aos Estados-membros para se afastarem das medidas aprovadas na Convenção e respetivos SARPS, o incumprimento desproporcional da Convenção frustra a sua aplicação e o seu objetivo de uma aviação segura.
Voltando concretamente a Chicago, da mesma forma que a soberania exclusiva do espaço aéreo e a inexistência de um direito de passagem internacional no texto da Convenção de Chicago permite a aplicação de sanções, ou pelo menos não as proíbe frontalmente (embora seja mais discutível a sua validade no âmbito do IASTA), importará refletir sobre algumas outras provisões da Convenção de Chicago, nomeadamente, os artigos 9.º, 11.º, 12.º, 13.º que simplesmente não permitem a aprovação do regime sancionatório atualmente em vigor.
Não havendo aqui espaço ou contexto para um discussão mais aprofundada sobre a proibição do transporte de certos indivíduos e a sua compatibilidade com o artigo 13.º da Convenção (“Regulamentos de entrada e saída”), de uma leitura simples das normas previstas para a criação de zonas interditas, no artigo 9.º da Convenção, e a norma sobre a aplicação das regras do ar prevista no artigo 11.º, rapidamente se compreende a contradição entre o princípio de não discriminação nelas contido e a aprovação de um regime sancionatório especificamente dirigido a aeronaves com a nacionalidade de um certo Estado.
Por outro lado, a provisão do artigo 89.º da Convenção prevê que em caso de guerra as disposições da Convenção não afetarão a liberdade de ação de qualquer dos Estados contratantes, independentemente de serem beligerantes ou neutros. Lido de forma ligeira, o artigo 89.º tem a liberdade suficiente para permitir o total afastamento dos compromissos da Convenção e tem sido bradado como justificação para a neutralidade menos neutra jamais vista, contudo, uma análise sistematizada e ponderada do mesmo artigo revela a necessidade da sua interpretação proporcional.
Dir-se-á que da mesma forma que o artigo 89.º tem de ser interpretado em conjunto com o artigo 3.º-bis na análise da legalidade de ações tomadas contra aeronaves civis por estados beligerantes, também na relação entre estados neutros é necessário interpretar esta norma de forma restrita, para que não se possa passar uma carta branca ao incumprimento generalizado da Convenção. Uma interpretação literal do artigo 89.º, como tem sido feita para justificar os variados incumprimentos da convenção em resultado da aplicação das sanções, também permite, por exemplo, o abate de aeronaves civis por beligerantes, ou o abate de aeronaves civis por estados ditos neutros. Pode parecer um exemplo extremo, mas quão longe estamos disso quando negamos o fornecimento de peças para que aeronaves civis possam operar na Rússia em segurança?
Infelizmente, como qualquer tenista russo saberá aos dias de hoje, proporcionalidade e razoabilidade na aplicação das sanções é algo que tem faltado.
[i] Regulamento (CE) n.º 467/2001 de 6 de março.
[ii] Regulamento (CE) 1901/98 de 7 de Setembro.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Pipe