Está muito em voga a discussão sobre o que é este novo populismo que tem assolado as democracias ocidentais nos últimos anos. Não sendo um fenómeno novo, o mesmo tem tentado explicar fenómenos como o Brexit, a nova política da Hungria e Polónia na sua relação com a União Europeia e o discurso político em países do continente americano com sistemas políticos presidencialistas. Contudo, não podemos imaginar que estes processos ocorrem em certos estados e não noutros; não existe, em análise comparativa, lugares a exepcionalismos nacionais, existem sim diferentes formas de manifestação do mesmo fenómeno.
No discurso populista, o inimigo é externalizado numa entidade ontológica cuja aniquilação irá restaurar o equilíbrio e a justiça na sociedade. Desta forma, os males da sociedade não fazem parte de algo inerentemente errado na nossa própria organização societária e económica, mas sim no abuso de poder por parte de um grupo (de preferência algo externo, parasita e fácil de identificar para facilitar a tarefa) que, por qualquer razão, tem singrado a nosso custo.
Desta forma, para um populista, a causa de qualquer problema nunca é o seu próprio sistema económico e social, mas o intruso, aquele que corrompe o sistema. Isso permite ao populismo adaptar-se a qualquer sistema ou situação, porquanto não vive de um conteúdo específico, mas da reificação do antagonismo enquanto uma entidade, ou seja, transforma os antagonismos e contradições existentes na vida social (e que em Democracia se encontram institucionalizados como parte do regime, já que a oposição de ideias é um elemento necessário ao funcionamento da democracia) num antagonismo permanente entre os “nossos” e “os outros”, o tal inimigo externo. Se isto é mais claro em regimes não democráticos, ou proto-democráticos, este mecanismo também é usado no seio de regimes com pretensões de democracia plena como o nosso[1].
Ora, se o Certificado Digital foi desenhado para permitir viagens internacionais, por que é agora o certificado digital de vacinação insuficiente para se entrar no país (?)
Ora, este é provavelmente o contexto que infelizmente explica as medidas aprovadas nos últimos dias em relação às companhias aéreas e seus passageiros. A transformação dos passageiros como a causa do aumento do número de infetados e, naturalmente, a vilificação das companhias aéreas que os transportam parece inacreditável, mas é a realidade desde a semana passada. Apenas assim se explica como, sob o novo regime, o certificado digital deixe de ser suficiente para os passageiros entrarem no país. Citando António Costa, Primeiro-Ministro de Portugal, a 25 de Junho de 2021: “O certificado digital é um instrumento que permite aumentar a liberdade de circulação com segurança. […] Foi imaginado só para atravessar fronteiras e nós o que fizemos, com o que o Conselho de Ministros ontem aprovou, foi utilizar essa ferramenta que as pessoas já podem ter para […] associarmos a esta ferramenta novas qualidades”[2], rematando “Portanto, o certificado digital não é uma barreira, pelo contrário, torna mais acessível o que dantes era menos acessível.”
Ora, se o Certificado Digital foi desenhado para permitir viagens internacionais, por que é agora o certificado digital de vacinação insuficiente para se entrar no país[3] quando ao mesmo tempo se mantêm estádios abertos sob a justificação da taxa de vacinação ser das mais altas do mundo[4]? Se a vacina é eficaz, então também o será para permitir que se viaje, pelo que se o causa das novas proibições não é a vacina, então resta concluir que a verdadeira causa são os vacinados (o que seria uma preocupante fonte de racismo e xenofobia) ou aqueles que os transportam (ponto a ponto).
Adicionalmente, as companhias aéreas, especialmente as que voam ponto a ponto, apresentadas como vis transportadoras do vírus, veem as contraordenações atingir uma moldura contraordenacional entre os vinte mil euros e os quarenta mil euros, por dia e por passageiro, sem comprovativo de teste, não apenas no embarque, mas quando os mesmos apresentem uma, cite-se, “temperatura corporal relevante na sequência do rastreio”, isto claro, com obrigação de depósito do valor da multa antes de contestar a mesma[5]. Medida obviamente para lá de qualquer razoabilidade ou proporcionalidade e que se viu justificada com um seco: “Constatamos que, infelizmente, as companhias aéreas não têm cumprido a sua obrigação”, afirmação que carece de concretização, justificação e, no mínimo, apresentação de números que a sustentem, já que no passado dia 1 de dezembro foram detetados apenas 20 passageiros sem teste no aeroporto. Aguardamos, então, a aplicação de penalizações a passageiros com prova de que a temperatura corporal do mesmo se encontra, no momento do final de desembarque, “relevante”.
Ainda mais grave, atente-se a lista de possíveis sanções acessórias que só se pode qualificar como um cardápio de equívocos. Lê-se no diploma que a prática das contraordenações indicadas em caso de reincidência (dois passageiros? Dois voos?), pode levar à aplicação de sanções acessórias[6], nomeadamente:
– Privação do direito a benefícios fiscais, benefícios de crédito e a linhas de financiamento de crédito.
O que de imediato levanta a questão de se perceber qual o benefício fiscal nacional que assiste às companhias aéreas, já que os benefícios que existem resultam de normativo comunitário e nasceram devido à dificuldade de situar geograficamente o local do facto tributável. No que diz respeito a benefícios de crédito e linhas de financiamento de crédito, fica a questão se os auxílios prestados à principal transportadora aérea nacional e à SATA se qualificariam e de que forma é aplicada esta sanção.
– Privação dos direitos de participar, como candidato, como concorrente ou como membro de agrupamento candidato ou concorrente, em qualquer procedimento adotado para a formação de contratos públicos.
Considerando a existência de Obrigações de Serviço Público em Portugal e as regras comunitárias no acesso às mesmas, esta norma levanta várias questões sobre as quais, noutras datas, opinaremos, por ser tema demasiadamente interessante para não merecer algumas linhas neste espaço de opinião. Não podemos, contudo, deixar de imaginar, considerando o normativo que obriga os Estados-Membros a comunicar os termos dos concursos públicos para Obrigações de Serviços Públicos, se aplicada esta medida, como será indicado à Comissão a decisão de exclusão de operadores aéreos comunitários de concorrer a Obrigações de Serviço Público se sancionados pelo presente diploma.
– Suspensão de licenças, alvarás ou autorizações relacionadas com o exercício da respetiva atividade.
Finalmente, não por ordem de importância antes pelo contrário, a ameaça de suspensão da licença relacionada com o exercício da respetiva atividade.
É por demais sabido que a suspensão de licenças de atividade apenas pode ser realizada pela autoridade competente, ou seja, a autoridade do estado-membro responsável pela sua emissão e supervisão. Adicionalmente, a suspensão e cancelamento da licença apenas pode ser realizada por motivos e falta de capacidade financeira do operador ou por questões de honorabilidade. Na prática, é sabido como mesmo estes requisitos são de difícil aplicação (veja-se o número de operadores que vendem passagens aéreas com processos de insolvência à porta), mas aquilo que persiste escapar às instâncias europeias, parece estar ao alcance do legislador nacional, pelo menos no papel.
Visa a norma em questão ser apenas eficaz para operadores nacionais? Mesmo nesse caso, a autoridade competente, que é independente, não pode, na nossa opinião, suspender ou cancelar licenças de operadores aéreos comunitários como medida acessória em processos contraordenacionais[7].
Em resumo, o presente diploma é, na nossa opinião, um diploma baseado numa abordagem populista, de “nós” contra “eles”, um universo no qual o mal “vem de fora”, trazido pelas vis operadoras comunitárias, embora não se percecione bem porquê nem quais. Só assim se justifica um diploma com penalizações tão desproporcionais e sanções acessórias em relação às quais dizer que são de duvidosa constitucionalidade é pouco, e que não se coadunam com a liberdade de circulação no espaço europeu.
Adicionalmente, com medidas punitivas tão desproporcionais para as operadoras, questiona-se se a fiscalização do mesmo será aplicada de forma uniforme a todos os operadores, ou se a intenção é criar uma espada de Dâmocles contra determinados operadores. A prática o dirá.
Numa era onde o zeitgeist é levantar muros e ignorar a desigualdade, aparentemente as companhias aéreas, que na sua atividade permitem a mobilidade de pessoas com o inevitável confronto de realidades, transformaram-se no próximo alvo a abater.
À laia de conclusão, será importante neste momento recordar o normativo comunitário criado no terceiro pacote e que revolucionou a aviação europeia, hoje enquadrado no artigo 15.º do Regulamento (EU) n.º 1008/2008, “Os Estados-Membros não podem submeter a exploração de serviços aéreos comunitários por uma transportadora aérea comunitária a qualquer licença ou autorização” e adiantemo-nos já a argumentos de excecionalidade sobre os tempos que vivemos pois é nos momentos excecionais e de crise que os direitos mais importam e mais importante se torna o seu respeito e a sua defesa.
Além das nefastas consequências diretas de trilhar caminho a foice em derivas populistas, é preocupante nos modelos populistas estes não permitirem a real análise do problema, aquela que contemple o estranho, não como inimigo, mas como sintoma daquilo que carece de melhoria na nossa própria sociedade. Ao centrar o problema naqueles que vêm de fora e nas operadoras comunitárias, não estamos a abordar a verdadeira discussão, o equilíbrio entre permitir atividade económica, a qual se desenvolve inevitavelmente em ambiente social, e a resposta imediata a esta crise pandémica, que é o isolamento. Ou, numa escala planetária, o desequilíbrio na distribuição de vacinas e a generalizada desigualdade no mundo. Numa era onde o zeitgeist é levantar muros e ignorar a desigualdade, aparentemente as companhias aéreas, que na sua atividade permitem a mobilidade de pessoas com o inevitável confronto de realidades, transformaram-se no próximo alvo a abater.
[1] Veja-se, a reificação da comunidade cigana e dos emigrantes como representativa de todos os males da Segurança Social, quando é sabido como os emigrantes recorrem menos aos sistemas de apoio social que os nacionais.
[2] Consultado a 30 de Novembro de 2021 no sítio da Lusa em: “https://www.lusa.pt/ppue2021/1657/article/33282750/covid-19-certificado-n%C3%A3o-%C3%A9-barreira-e-facilita-trajetos-e-acesso-a-eventos-costa-c-%C3%A1udio”
[3] Note-se que a aceitação do Certificado Digital nas modalidades de certificado de teste ou de recuperação se mantém;
[4] O autor é tão amante da bola como qualquer outro, foi apenas um exemplo, perdoem-me os que têm bilhete para o derby;
[5] Decreto-Lei n.º 104/2021 de 27 de Novembro;
[6] Artigo 6-A do mesmo diploma;
[7] Norma que consta já do Regime Jurídico das Contra-Ordenações Aeronáuticas (artigo 14.º do decreto-lei 10/2004 de 9 de Janeiro)
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado na DLA Piper