“Shipping is a fascinating business. Since the first cargoes were moved by sea more than 5,000 years ago it has been the forefront of global development”[i].
Em Portugal são várias as manifestações de medo dos negócios no âmbito do transporte marítimo. Tal tem uma razão de ser. Trata-se de uma atividade extremamente cruel, em particular para quem dela procura tirar partido (fazer negócio ou carreira política) sem conhecer os seus princípios económicos básicos. Medo que se pode controlar lendo o livro “Maritime Economics”, de Martin Stopford. De preferência na língua original onde “Shipping” quer dizer negócio, enquanto na língua portuguesa economia marítima, economia azul, economia do mar querem dizer tudo e nada.
Os governos têm medo do “shipping”
Uma atividade com 5.000 anos, sobre a qual existem palavras tão duras e claras como as de Fernando Pessoa[ii](“quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor”), Oliveira Martins[iii] (“mar que à imaginação parecia como tesouro encantado”) ou Ernâni Lopes (“o hypercluster do mar – um domínio de potencial estratégico”)[iv], mete medo aos governos, por isso nunca a encaram de frente.
Dois exemplos:
- Na orgânica do XXII Governo dividiu-se o setor por vários ministérios. Ministério do Mar (para tratar da investigação nos oceanos, das pescas, da economia azul, e onde se inclui a Administração Marítima), Ministério das Infraestruturas (para tratar das tão apreciadas obras públicas portuárias), Ministério do Ambiente (para tutelar o transporte marítimo-fluvial).
- Os governos regionais têm autêntico pavor do “shipping”. Nos Açores, o governo regional tem-se recusado perante a Assembleia Regional a promover estudos sobre a possibilidade de melhorar a eficiência da cabotagem insular[v]. Isto quando o modelo operacional de transporte existente condiciona fortemente o setor exportador. Na Madeira, a possibilidade de alterar o sistema baseado na tecnologia tradicional de transporte em navios de propósitos múltiplos (ou porta contentores) para navios ro-pax ou ro-ro, a exemplo do que existe noutras regiões insulares, é um debate sempre recusado ou limitado ao projeto de um navio ferry que Alberto João lançou como armadilha para o seu sucessor. Serviços com navios ro-ro significa transportar mercadorias em camiões ou “trailers” com contentores, sem necessidade de movimentos verticais sucessivos nos terminais portuários, com um tempo em trânsito muito inferior e uma fluidez imbatível.
Em grande parte, o medo do governo central e dos governos regionais vem da incapacidade de construir e implementar políticas que se possam impor aos interesses instalados na administração pública setorial, políticas que sejam negociáveis com as empresas.
Muitos projetos podem ser estruturados no sentido de aumentar a eficiência dos serviços de transporte marítimo e melhorar a utilização da infraestrutura portuária existente. Projetos de eficiência económica, ambiental e energética no âmbito do transporte marítimo que podem ser incluídos no Plano de Recuperação Económica 2020-2030. Mas para tal são necessários governos fortes, dispostos a “passar além da dor”.
O Livro Cinzento
Entre os vários interesses atrás referidos surgiu, em 2016, a EISAP (European International Shipowners Association of Portugal) que se diz “uma associação representativa dos armadores internacionais com navios registados em Portugal” e que se assume como “uma entidade colaborativa, pretendendo ajudar Portugal a criar um verdadeiro e competitivo cluster ligado ao shipping, algo que será impulsionador de toda a economia azul”.
A EISAP está a promover um “Livro Branco” com um “repto aos atores públicos”.
A EISAP é dirigida por armadores alemães com navios no Registo Internacional da Madeira (MAR) que encaram a bandeira portuguesa como uma ótima “barriga de aluguer” para, no contexto da União Europeia, obter condições vantajosas para projetos de desenvolvimento das suas frotas (ou no contexto atual manterem-se no mercado). Alguns estão por cá há mais de 30 anos, desde o tempo em que beneficiavam de subsídios ao investimento em navios, pagos com dinheiro dos contribuintes portugueses.
Na Alemanha, nos últimos dez anos, vários armadores perderam o apoio e o prestígio que tinham junto dos investidores (o sistema de KG’s[vi]) e dos bancos, a quem causaram prejuízos de biliões de euros[vii]. Por terem sido gananciosos. Por terem encomendado a estaleiros na China centenas de navios, utilizando capitais e apoios europeus. Por alguns desses navios terem sido desmantelados passados alguns anos por falta de ocupação e, portanto, de receitas.
Nesse “Livro Branco” os armadores alemães não apresentam propostas para a sua ação. Por exemplo, criar um fundo financeiro com parte dos ganhos que obtêm por utilizar a bandeira portuguesa – para investir da formação náutica ou na investigação na economia dos transportes marítimos. Pelo contrário, no seu livro os armadores alemães listam exigências ao Governo Português – vantagens adicionais, fiscais e outras, no âmbito do RIN-MAR e não só – vantagens que eles encaram como contrapartidas para “ajudar Portugal”. Não acredito que os armadores estrangeiros da EISAP pretendam “ajudar Portugal”!
Em grande parte, o medo do governo central e dos governos regionais vem da incapacidade de construir e implementar políticas que se possam impor aos interesses instalados na administração pública setorial, políticas que sejam negociáveis com as empresas.
Sabemos que as receitas do RIN-MAR deviam ser utilizadas para desenvolver a economia do transporte marítimo nacional. Sabemos que os armadores portugueses também utilizam o RIN-MAR para obter vantagens que o registo convencional não permite. O “tonnage tax” e as outras ações de propaganda da ministra Ana Vitorino não passaram disso, mera propaganda. Sabemos que, no passado, o negócio do “shipping” para algumas empresas nacionais foi feito a pensar no mercado protegido da cabotagem insular e nos subsídios do Estado à aquisição de navios.
Mas os armadores alemães estão muito longe de ser um modelo de boa gestão no “shipping”. Não precisamos das suas lições de gestão. Na minha opinião um “Livro Branco” centrado nos interesses dos armadores alemães é uma vergonha.
A Regulação
Ficámos a saber pelo deputado do Partido Socialista Carlos Pereira, durante audiência à Autoridade da Mobilidade e Transportes, no dia 1 de julho 2020, na Comissão de Economia[viii], que aquele regulador nunca deu resposta aos seus pedidos de intervenção no setor de transportes marítimos para a Madeira face a denúncias e sinais claros de existência de um cartel e de diversas irregularidades na operação portuária (ausência de autorização legal para exercer a atividade). O deputado do PS espera que “de uma vez por todas” a AMT exerça as suas competências de fiscalização e que se deixe de “respostas fofinhas”. Na mesma audiência, o deputado Bruno Dias, do PCP, juntou idêntica preocupação relativamente ao transporte marítimo para os Açores.
Os Estatutos da AMT definem como sua obrigação a prestação de informações ou esclarecimentos à Assembleia da República. A AMT tem como uma das suas atribuições prestar apoio à AR na implementação e avaliação de políticas, incluindo com a elaboração de pareceres e estudos.
Por exemplo, o regime jurídico da cabotagem insular[ix] prevê a existência de um “Observatório da Informação” para a avaliar o funcionamento do mercado em vários aspetos. A lei aponta para transparência no mercado de transportes marítimos na defesa dos interesses dos carregadores e dos consumidores. A AMT decidiu não aplicar a lei. Durante a audiência, o presidente da AMT defende-se com a confidencialidade das informações.
É grave que a AMT não cumpra as suas obrigações para com a Assembleia da República. Tal não acontece porque a AMT não tenha meios humanos ou financeiros, ou não conheça o negócio do “shipping”. Pelo contrário, o presidente da AMT foi presidente da associação de armadores e afirmou na audiência ter “muitos amigos no setor”. Talvez o problema seja mesmo esse.
O negócio do “Shipping”
Os aspetos atrás referidos podem parecer maléficos, para quem só lê em alguma comunicação social notícias setoriais de “sobe e desce”, “recordes” de carga ou navios ou de conteúdo saudosista sobre os navios do Estado Novo, ou fascinantes, para quem leu “Maritime Economics”.
Martin Stopford diz-nos que no passado o “shipping” criou superestrelas (que ganharam muito dinheiro em pouco tempo) e alguns vilões (que construíram frotas contraindo empréstimos junto dos bancos com garantias falsas). Vou sugerir ao Martin alguns nomes portugueses para a próxima edição; os nomes alemães ele já conhece.
[i] “Maritime Economics” Martin Stopford, 3.ª edição, 2009. O autor anunciou recentemente a publicação, em 2021, de uma versão atualizada.
[ii] Poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa.
[iii] “Portugal nos Mares – antologia”, Círculo de Leitores, publicado em 1988.
[iv] Consultar em: https://www.cienciaviva.pt/img/upload/Hypercluster%20da%20Economia%20do%20Mar(5).pdf
[v] Ver em: https://www.acorianooriental.pt/noticia/parlamento-recusa-estudo-sobre-transporte-maritimo-de-mercadorias-nos-acores
[vi] “The German KG funds, which were set up as a tax havens for wealthy individuals, enabling them to collectively buy in to ship owning, are now no longer a viable source of funding as stakeholders lost confidence in shipping markets. Traditional shipping banks are no longer able to support the industry in the way they once did and a number of major shipping banks have stopped lending to the industry all together or have limited their activities to a handful of major clients.”, Innovation in ship finance, Rebecca Jones, 2018.
[vii] Ver por exemplo em https://www.dw.com/en/shipping-crisis-puts-german-banks-under-pressure/a-37230991
[viii] Ver no Canal Parlamento em https://canal.parlamento.pt/?cid=4659&title=audicao-da-autoridade-da-mobilidade-e-dos-transportes-amt.
[ix] Decreto-Lei nº7/2006 de 4 de janeiro, artigo 8.º.
Economista de Transportes Marítimos
Concordo na generalidade com o artigo de Fernando Grilo e, anteriormente, com o do Colega João Soares:clarividência quanto baste.