“O que impede de saber não são nem o tempo nem a inteligência, mas somente a falta de curiosidade”
(Agostinho da Silva, filósofo e poeta)
“O mar aproxima as regiões que ele separa”
(Provérbio em O Livro dos Provérbios Portugueses / Recolha e Organização Alfabética e Temática de José Ric.Marques da Costa)
Introdução
Na Logística, a coordenação das ações tendo como horizonte de intervenção a eficiência e a eficácia do movimento das cargas ao longo dos canais logísticos é uma exigência para aumentar a velocidade do trânsito de modo a chegar rápido, leia-se, a chegar pontualmente. A coordenação, sendo a capacidade de conjugar o movimento da carga com os meios e os processos que lhe estão subjacentes, ou seja, a disposição metódica das coisas, torna essencial a sua qualidade, o que assenta na excelência do processo de informação e de comunicação instalado, e que é indispensável.
Portanto, as tecnologias de informação e de comunicação são fundamentais e o talento com que são utilizadas é determinante para o sucesso da coordenação.
A Multimodalidade, como representação mental e abstrata do movimento das cargas entre um ponto de origem e outro de destino, envolvendo mais do que um modo de transporte, tem vindo a conquistar um grande espaço de reflexão dentro da Logística, porque a coordenação, enquanto atributo multimodal primacial, é complexa e nem sempre tem sido bem conseguida. Todos buscam as melhores soluções, mas poucos as encontram.
As disfunções logísticas que resultam da desordem na coordenação são caríssimas aos “Donos das Cargas”. A insatisfação dos Mercados é um preço demasiado elevado que os Atores Logísticos têm a obrigação de eliminar.
São exemplos de disfunções logísticas, que não podem acontecer, as
longas estadias dos navios nos portos devido a baixos níveis de desempenho destes, ou então,
os baixos níveis da “schedule reliabilty” dos navios, em que os melhores armadores são pontuais, apenas, em pouco mais de metade das suas escalas. (Hapag-Lloyd 54,9%, Fev24 / CMA CGM 57,1%, Maio24).
A utilização do conceito “Multimodalidade” como caracterização de uma certa realidade logística tem vindo a alargar-se nos tempos modernos, como já se disse, o que justifica abordar o seu conteúdo.
A Multimodalidade e o seu conteúdo
Recorrendo ao “Dictionary of Shipping – International Business Trade Terms and Abbreviations”, de Alan E Branch and David Branch, e ao LLOYD’S PRACTICAL SHIPPING GUIDES – Port Operations, Planning and Logistics, de Khalid Bichou, e cogitando sobre a definição de Multimodalidade, retira-se que ela é o resultado de cinco atributos que se conjugam de modo a acelerar e tornar fluida a Cadeia Logística, no porta a porta, a saber:
[Um Serviço de Transporte que]
envolve mais do que um modo de transporte;
envolve transportes regulares;
a carga é transportada de forma unitizada mantendo-se a mesma unidade de carga ao longo de todo o trânsito até ao destino;
funciona como um processo integrado suportado pela boa conexão entre os Atores;
um processo que necessita de ser muito bem coordenado;
Os três primeiros atributos encontram-se desde logo nos confins da história, na linha regular fenícia entre Tiro, no atual Líbano, e Gadir (Cádiz na Espanha de hoje), que remonta 2800 anos na história da Humanidade. Aí encontram-se igualmente o uso da Ânfora como unidade de carga, o que era comum nesses tempos remotos e se estendeu às Civilizações Clássicas, Grécia e Roma; era o contentor da época.
Contudo, era um contentor não padronizado como, de resto, seriam todas as unidades de carga usadas no percurso da história, o Barril, o Cesto, até ao Séc. XX quando a Administração Americana, inspirada nos contentores de Malcom MacLean, definiu os padrões 20’ e 40’.
O peso da economia americana na economia mundial criou as condições para impor ao Mundo um momento especial da Logística, a estandardização da unidade de carga, onde a palavra “contentor” se autonomizou como sinónimo de uma realidade específica de unitização: a contentorização.
(Yet after 1966, as truckers, ship lines, railroads, container manufacturers and governments reached compromises on issue after issue, a fundamental change could be seen in the shipping world. The plethora of container shapes and sizes that had blocked the development of containerization in 1965 gave way to the standard sizes approved internationally) [in The Box / Marc Levinson]
Ao mesmo tempo aconteceu o despontar das tecnologias de informação e de comunicação (TIC): no início o telefone, o telex e o fax, e mais tarde a www, o EDI e o e-mail. Hoje estamos no patamar das E-Platform/E-Shop/E-Auction.
O Contentor, agora como unidade padrão de carga, e as TIC, ambos atuando em conjunto, vão transformar o porta-a-porta do movimento das cargas “como um processo integrado suportado pela boa conexão entre os Atores”, o atributo 4 do conteúdo do conceito “Multimodalidade”.
Os Transitários e os Operadores Logísticos são os beneficiários da estandardização da unidade de carga ao reverterem para si a coordenação dos canais logísticos, adicionando eficiência e eficácia à Logística.
Sem estes Grupos Profissionais, o atributo 4 não funcionaria e não fere dizer que a nova unidade de carga padronizada, o contentor, não alteraria muito daquilo que os Fenícios faziam com a sua Ânfora na sua Rede de Transporte Marítimo no Mediterrâneo (ou os Portugueses com o Barril no período das Descobertas) no movimento da carga, entre dois pontos, “envolvendo mais do que um modo de transporte e transportes regulares”.
Mas se o contentor como unidade de carga estabilizou nos padrões 20’ e 40’, depois de atravessar a história na Humanidade revestindo diversas formas a partir da ânfora, as TIC continuaram a sua evolução, muito rápida, na direção das Plataformas Digitais, as E-Platform/E-Shop/E-Auction, que se tornaram as ferramentas de primeira grandeza “num processo que necessita de ser muito bem coordenado” (atributo 5).
Os donos das Plataformas Digitais mais robustas tenderão, assim, a liderar a coordenação da Cadeia Logística e, consequentemente, a da realidade Multimodal.
O Futuro
Os Grandes Distribuidores do E-Commerce estão na linha da frente da candidatura à liderança. Os seus modelos de negócio são muito agressivos quanto aos prazos de entrega, uma vez que operam em mercados muitíssimo competitivos, com os hiperconsumidores ávidos do uso das suas compras. Como consequência, essa avidez do hiperconsumo está a refletir-se ao longo da Cadeia Logística até aos seus confins, a montante, e vai impor os seus termos de funcionamento onde a pontualidade marca.
Em Outubro do ano passado, a publicação INBOUND LOGISTICS dava-nos este retrato de dois grandes distribuidores:
Ø IKEA’s Supply Chain: A well-known case study in logistics is IKEA, the Swedish furniture giant. They efficiently combine road, rail, and maritime transport to deliver products from manufacturers to stores worldwide
Ø Amazon’s Global Network Its ability to promise and meet two-day or even same-day deliveries in multiple regions is attributed to its well-coordinated multimodal transportation system and modes of transportation.
Em Abril deste ano, a Amazon News dava igualmente nota da intervenção do seu representante na reunião do G7 em Itália, no mesmo sentido, com o seguinte título:
The following are remarks by Stefano Perego, our VP of International Operations, during the G7 Ministerial meeting on Transport in Milan.
Transcrevem-se alguns excertos:
“Amazon is a strong supporter of G7 economies – between 2010 and 2021, we invested €1.276 trillion and employed over 1.3 million people acro G7 countries.
…
On April 11th, we inaugurated our new Operations Innovation Lab in Vercelli, northern Italy. The Lab serves as the hub for advanced robotics and AI-powered innovations destined to shape the future of work across our European fulfilment centre network.ss G7 countries.
…
I shared one of the examples about how we continue to innovate at Amazon with the G7 transportation community. In Europe, we have been expanding the use of short sea routes and rail to transport packages and inventory in recent years.
…
These routes are powered by partnerships with various European sea and rail carriers and enable us to speed up customer deliveries and inventory transfers, reducing carbon emissions by almost 50%.
…
As we share examples of how we innovate and drive efficiencies across our logistics network and open the doors of our buildings, including the doors of the newly inaugurated Operations innovations Lab, I’m excited about the future we can build together.”
Isto é esclarecedor do futuro que se desenha na realidade Multimodal da Cadeia Logística.
Considerações a propósito
A Multimodalidade como realidade logística transporta-nos, pois, para uma viagem histórica entre a singeleza “do envolvimento de mais do que um modo de transporte” e a grandiosidade “do processo integrado suportado pela boa conexão entre os Atores, um processo que necessita de ser muito bem coordenado”.
[They efficiently combine (IKEA) / well coordinated multimodal transportation (Amazon)] disse-se acima.
Muitos portos e muitos atores do Setor Marítimo continuam a discutir a Multimodalidade, no entanto, deixando a impressão a quem os ouve que não perceberam, ainda, esta nova realidade que nos cerca patrocinada pelos Grandes Distribuidores.
A este nível a coordenação já não é um ato de “Governance formal” mas, antes, um episódio de “Governance algorítmica”.
A Multimodalidade, neste ambiente digital galáctico, atingiu a sua maturidade conceptual e as opções estão feitas, as resistências vão cair.
Muitos portos e muitos atores do Setor Marítimo fixaram-se na sumptuosidade do “Brick” e esqueceram o “Click”. Navios gigantes, portos gigantes, o Big, enchem os discursos encantatórios de investimento! Tudo vai acontecer na Terra, no Mar neste caso, o Paraíso anda a bordo!
Nesta onda, Portugal quase sempre está ufano de ambição! Grandes opções estratégicas para os portos, um desígnio! Comboios por todos os lados, para passageiros e para carga! Aviões por bons e maus motivos! A festa quando se cresce mais, ou decresce menos, do que a Espanha, nem que sejam décimas!
No entanto, a realidade é que entre 2017 e Dez 23 os Portos Portugueses do Continente (PPC) perderam, paulatinamente, 13 milhões de toneladas de carga, 13,5% do total de 2017, que se cifrou em quase 96 milhões de toneladas de carga, o maior volume de carga movimentada nos PPC, desde sempre. Hoje, é com 83 milhões de toneladas de carga que temos de enfrentar o Digital e o Verde!
Em apenas 6 anos os PPC afundaram-se! O que acham disto os Atores Portuários Portugueses? É importante saber-se, porque há Concessões que se aproximam do seu termo, em alguns casos podem ser prolongadas ainda algum tempo, mas isto não deve ser feito sem haver uma reflexão profunda sobre esta pergunta.
Em Leixões, por exemplo, o discurso de alguns Atores tem ambição “Big” mas o porto afunda-se no “Small”! O efeito refinaria passou, o que havia a perder está perdido, mas as demais cargas demoram a mostrar o seu potencial para ganhar volume! O reciclável é um “dos futuros” do Porto de Leixões, Mário Draghi explica no seu relatório porquê, mas para além da estilha, da sucata e do vidro nada mais se ouve! Ao mesmo tempo, os contentores viajam de impasse em impasse, nesta carga o porto cresce 0% enquanto o vizinho Vigo avança 10%!
Como os tempos mudaram, em Leixões! Durante 35 anos, entre 1983 e 2017, este porto não teve outra ambição que não fosse ser “Great” e acabou sendo “Big”.
A Espanha é, cada vez mais, uma potência logística no Sul da Europa, influente no todo europeu, enquanto Portugal está cada vez mais remetido à posição de uma modesta localização logística.
Neste período duro do seu crescimento o “Click” foi uma prioridade porque, então, já se percebia a importância da coordenação da Cadeia Logística e da sua realidade Multimodal. Nesta dinâmica do Porto de Leixões não passou despercebido o papel do e-commerce na formulação dos novos mercados logísticos. Em dois momentos diferentes, separados por uma década, Leixões fez a aproximação à Amazon em busca de formas de colaboração mútua, porque se percebeu este novo mundo logístico em desenvolvimento.
A Amazon poderia ser um “partner” mas até agora não há frutos da aproximação do Porto de Leixões ao maior Distribuidor Eletrónico! Mas a IKEA já é um cliente do Porto de Leixõe,s quer nos produtos de consumo quer nos produtos intermédios (Swedwood) e, como [They efficiently combine (IKEA) / well coordinated multimodal transportation (Amazon)] isto são factores de risco de mercado elevado para o Porto de Leixões que tem de ter níveis de desempenho em conformidade. Como vai lidar com o digital, neste contexto das E-Platforms? Com a moribunda JUL?
Considerações finais
O Portugal Portuário, em termos geopolíticos, não incomoda mas também não é incomodado, e, assim, os seus Atores não sentem a tensão do mundo logístico em profunda alteração e, como resultado, parece terem-se acomodado.
Como consequência, o destino logístico da Ibéria passa, cada vez mais, por Espanha onde o maior entre os maiores distribuidores de produtos, suportado por Plataformas Digitais de Negócio robustissímas, a Amazon, se instalou, e
√ “since its arrival in Spain in 2010, Amazon has invested more than 17.5 billion euros in its operations across the country”. …
√ In 2023 alone, we invested over €3.4 billion to provide quality service by delivering products to customers quickly, sustainably, and at competitive prices.
√ The independent consultancy, Keystone Strategy, estimates that our investments since 2010 have contributed over €13 billion to Spain’s GDP.”
√ Additionally, in May this year, Amazon Web Services (AWS) announced plans to invest €15.7 billion in Spain over the next ten years through the expansion of its AWS Europe (Spain) Region, which will support more than 17,500 full-time jobs in local businesses annually, including direct, indirect, and induced jobs.”
(newsletter da Amazon em 11 de Julho de 2024).
Em contrapartida os investimentos da Amazon em Portugal limitam-se a um escritório em Lisboa, de onde a AWS desenvolve a sua atividade e do qual deu nota em 2019 nos seguintes termos:
The new Amazon CloudFront location will offer all organizations in the country faster content delivery and added cybersecurity protection. Launch follows opening of Lisbon office in 2018.
Em Portugal, no universo da Amazon, em matéria de investimento, nada mais aconteceu daí para cá, pois esta é “a mais recente” notícia sobre as atividades da Amazon em Portugal. Foi publicada este ano 2024/Jul na sua página “Investing in Europe” . A Espanha neste site aparece em grande destaque.
A Espanha é, cada vez mais, uma potência logística no Sul da Europa, influente no todo europeu, enquanto Portugal está cada vez mais remetido à posição de uma modesta localização logística.
A Multimodalidade na plenitude dos seus atributos como realidade logística, na Ibéria, está cada vez mais inclinada para o nosso Vizinho.
Não é aceitável, os Portugueses têm de reagir ao contexto Ibérico! Isso depende de Nós!
Miguel Torga ensina-nos que para os Povos Ibéricos:
“O caminho é saibroso e franciscano
Do berço à sepultura;
Mas a grande aventura
Não é rasgar os pés
E chegar morto ao fim;
É nunca, por nenhuma razão,
Descrer do chão
Duro e ruim!
(do poema Vida, em Antologia Poética do poeta Miguel Torga )”
Do ponto de vista logístico, alguns dos Povos Ibéricos fizeram “O caminho saibroso e franciscano” e traçaram “a grande aventura”. Outros, nem tanto! Portugal, hoje, parece estar no 2º grupo, não obstante nos Sécs XV e XVI ter estado à frente do primeiro, ter liderado o Transporte Global da época.
Post Scriptum
Pela oportunidade, transcreve-se o poema Vida, que é parte de um conjunto de poemas sobre a Ibéria, “os Poemas Ibéricos”, de Miguel Torga.
“Vida
Povo sem outro nome à flor do seu destino;
Povo substantivo masculino,
Seara humana à mesma intensa luz;
Povo basco, andaluz,
Galego, asturiano,
Catalão, português:
O caminho é saibroso e franciscano
Do berço à sepultura;
Mas a grande aventura
Não é rasgar os pés
E chegar morto ao fim;
É nunca, por nenhuma razão,
Descrer do chão
Duro e ruim!
(Poema Vida de Poemas Ibéricos em Antologia Poética do poeta Miguel Torga / Edição D.Quixote )”
Bibliografia
Para informação adicional sobre o Transporte Marítimo no tempo dos Fenícios podem consultar-se as seguintes obras:
Mediterranean Connections / Maritime Transport Containers and Seaborne Trade in Bronze and Early Iron Ages by A. Bernard Knapp and Stella Demesticha
Transport Amphorae Trade in the Eastern Mediterranean / Acts of the International Colloquium at the Danish Institute at Athens, September 26-29, 2002 by Jonas Eiring and John Lund
The Phoenicians and the West / Politics, Colonies, and Trade by Maria Eugenia Aubet
Phoenicians and the Making of the Mediterranean by Carolina López-Ruiz
JAIME H. VIEIRA DOS SANTOS
Ex-Gestor de Terminais Portuários