É chegado o verão e, consigo, o aumento Do número de passageiros em voos e das reclamações. É também a altura de partilhar um dos mais interessantes acórdãos sobre a aplicação do Regulamento n.º 261/2004 – relativo às compensações a passageiros por atraso, cancelamento ou recusa de embarque – com que o Tribunal de Justiça da União Europeia nos presenteou em tempos recentes no seu trilho de clara substituição ao legislador, com dramáticas consequências para os operadores.
No processo Flightright GmbH vs. American Airlines Inc., cujo reenvio prejudicial ao tribunal europeu correu termos no processo C-436/21, os termos do litígio são enganadoramente simples. Uma passageira celebrou um contrato com uma agência de viagens, materializado em uma única reserva, para voar de Estugarda, na Alemanha, para Kansas City, nos Estados Unidos da América.
A viagem foi organizada através de sucessivos contratos de transporte. Um primeiro voo de Estugarda para Zurique, na Swiss, um segundo voo de Zurique para Filadélfia e um terceiro voo de Filadélfia para Kansas City. Os segundo e terceiro voos foram operados pela American Airlines. No regresso, igualmente organizado pela agência, a passageira viajou de Kansas City para Estugarda, passando por Chicago e por Londres. A agência de viagens emitiu um único programa com o itinerário assim como uma única fatura com um “preço de utilizador” para todo o trajeto. Para aqueles que ainda se lembram, é essa a principal atividade das agências de viagem: organizar um roteiro de viagem congregando diversos contratos de transporte (e não só) num produto único adaptado às necessidades específicas do passageiro.
Enquanto que os voos de Estugarda para Zurique e de Zurique para Filadélfia decorreram normalmente, o voo entre Filadélfia e Kansas City atrasou-se mais de quatro horas à chegada. A Flightright, em nome da passageira, apresentou um pedido no tribunal alemão para o pagamento de uma compensação de €600,00 (seiscentos euros) e, como se imagina, daqui resultou uma questão prejudicial ao TJUE.
O que se encontra em questão neste caso não é a causa do atraso ou a aplicabilidade da cláusula penal, mas a responsabilidade da American Airlines ao abrigo do Regulamento quando nenhum dos voos por esta realizados teve partida no território de um membro da União Europeia. Note-se que foi a Swiss quem realizou o transporte entre a Alemanha e a República Helvética, de onde a passageira partiu para os Estados Unidos da América.
Este tema, que já foi tratado em, pelo menos, Wegener e Ceske Aeronilie teve já uma interpretação bastante alinhada com o conceito de viagem já previsto na antiga Convenção de Varsóvia de 1929 e, atualmente, Convenção de Montreal de 1999, de que mesmo tratando-se de três voos diferentes, os mesmos devem ser considerados uma única viagem (ou “unidade” na terminologia menos feliz do Tribunal de Justiça) quando realizados no âmbito de uma única reserva.
A presente decisão, ao levar Wegener mais longe e, provavelmente, ao mais longe possível, levanta questões interessantes da perspetiva dos operadores aéreos mas, acima de tudo, das dificuldades de aplicação de velhas normas a uma indústria reinventada.
O que Flightright GmbH vs. American Airlines Inc. preconiza contudo, é ir um passo mais longe do que as decisões citadas. A procedência do pedido prevê que se considere também uma única viagem a combinação de voos entre operadoras aéreas, desconexas entre si e sem qualquer acordo comercial, em uma única operação de transporte aéreo, quando esta viagem foi planeada por uma agência de viagens.
Note-se que a única coisa que une a Swiss e a American Airlines é o facto de servirem os mesmos aeroportos, neste caso Zurique, em horários que permitem a ligação entre voos. Da perspectiva da American Airlines esta recebe um passageiro fora da União Europeia, em Zurique, com destino a um ponto nos Estados Unidos da América, sem ter qualquer ligação ou interesse no voo anterior do passageiro a partir de Estugarda.
Adicionalmente, tendo a American Airlines recolhido o passageiro em causa em Zurique, simultaneamente se levanta a questão de saber se o acordo entre a União Europeia e a Suíça pode ser interpretado no sentido do Regulamento se aplicar a passageiros que embarquem na Suíça com destino a um país terceiro. Infelizmente, o tribunal não se pronunciou sobre o tema da aplicação do Regulamento nos termos do acordo entre a União Europeia e a Suíça, o qual tem levantado várias questões e beneficiaria de um maior esclarecimento.
Da forma menos surpreendentemente possível, até para não se afastar de Wegener, o Tribunal Europeu considerou que a realização de uma única reserva pelo passageiro junto de uma agência de viagens era suficiente para se considerar tratar-se de uma única reserva, logo uma única viagem.
Mais uma vez apoiado na deficiente redação do Regulamento, o tribunal considerou que a omissão no texto do Regulamento quanto à necessidade de uma relação legal ou comercial entre os operadores aéreos para o preenchimento do conceito de voo de ligação permite a qualificação da operação concreta em causa como um voo de ligação, sendo por isso devida a indemnização à passageira pela companhia aérea.
A presente decisão, ao levar Wegener mais longe e, provavelmente, ao mais longe possível, levanta questões interessantes da perspetiva dos operadores aéreos mas, acima de tudo, das dificuldades de aplicação de velhas normas a uma indústria reinventada.
Em primeiro lugar, e de forma incidental, o Tribunal abre timidamente a porta a um eventual direito de regresso da companhia aérea sobre a agência de viagens. Ficamos a ponderar sobre com que margens teriam as agências de viagem de operar se tal prática se difundisse. Não sendo exatamente uma indústria em crescimento devido à facilidade dos tempos modernos para o passageiro em organizar a sua própria viagem seria a morte definitiva das agências.
Mais interessante, contudo, é a perspetiva de que, realizado o paralelismo com a Convenção de Varsóvia de 1929 e a Convenção de Montreal de 1999, a solução apresentada no presente caso não é assim tão diferente da aceção do conceito de bilhete de transporte apresentado por estas convenções e, em específico, as normas de aplicação da Convenção. Também estas convenções apresentam critérios alargados de interpretação do conceito de viagem para identificação da aplicabilidade da Convenção. O Tribunal realiza um processo semelhante de extensão da aplicabilidade do Regulamento, pretendendo a sua aplicação da forma mais extensa possível.
O que o Tribunal aparenta ignorar, por lapso ou voluntariamente, é que o transporte aéreo no século passado se baseava num mercado regulado onde o Interlining imperava. No modelo regulado do século passado, a American Airlines tomaria o passageiro da Swiss (e vice-versa), mas existia não só um claro conhecimento da totalidade do itinerário do passageiro, como também uma partilha da receita da viagem entre os operadores, com a comissão paga à agência de viagens igualmente estipulada de forma objetiva. Em suma, era o sistema da IATA que permitia a uniformização de serviço prestado ao passageiro em termos que foi já há décadas abandonado pelas transportadoras aéreas, embora, como se veja, com
desconhecimento pelo tribunal.
Finalmente, e como sempre, a má redação do Regulamento continua a funcionar como um autêntico instrumento punitivo das companhias aéreas. O Tribunal apoia-se na inexistência de definição de voos sucessivos para considerar que nada obriga a que exista uma relação económica entre as transportadoras para que se trate realmente de um voo sucessivo. Porém, perante a total ausência de definição de transporte sucessivo, seria obrigação do tribunal, no mínimo, em âmbito de preenchimento da lacuna identificada, explicar porque afasta o conceito de transporte aéreo sucessivo da Convenção de Montreal, o qual prevê expressamente como transporte sucessivo aquele que é “encarado pelas partes como uma única operação”, o que claramente não é o caso, e que ocorre quando “uma transportadora aceita os viajantes”, o que no presente caso claramente não ocorreu.
A American Airlines simplesmente embarcou um passageiro de Zurique para Kansas City. Afinal, graças ao Tribunal Europeu, levava consigo um “oitavo passageiro” chamado Regulamento 261/2004.
FRANCISCO ALVES DIAS
Advogado Especializado em Direito Aéreo e Espacial