Hoje as companhias de shipping de contentores registam lucros históricos, mas no passado recente acumularam perdas brutais, lembra o director executivo da AGEPOR.
Mais do que os lucros, concede Belmar da Costa, o que motiva as críticas são a alta dos fretes e alguma degradação do serviço. Os clientes queixam-se e os agentes de navegação (que não beneficiam dos lucros, sublinha) servem de “saco de pancada”.
Ainda assim, os “milagres” vão-se fazendo numa base diária e as perspectivas são, no fundamental, positivas., seja no que respeita à aposta na intermodalidade, seja nos desafios e oportunidades colocados pela relocalização da produção, seja no domínio da digitalização e da descarbonização – onde Portugal, por vezes, até vai depressa de mais, refere o director exrcutivo da associação dos agentes de navegação.
T&N – As companhias de shipping de contentores continuam debaixo de fogo. desde logo por causa dos lucros históricos conseguidos. Como comentam?
Belmar da Costa – É hoje um lugar-comum, porque também uma enorme evidência, falar-se nos lucros históricos das companhias de shipping de contentores. É também claro que, sempre e quando, se apontam os lucros históricos, o que se pretende no fundo é enfatizar (de forma critica) o actual nível de fretes no mercado.
Sem negar o que é hoje uma evidência aos olhos de todos, gostaria de salientar, no entanto, que, quando convém, a nossa memória é muito selectiva e tendemos a valorizar muito mais a situação presente e aquilo que nos interessa demonstrar, esquecendo propositadamente o longo período que antecedeu o actual.
Todos sabemos que a situação que vivemos hoje no mercado do transporte marítimo não é uma situação que traduza a normalidade. Ela resulta de uma conjugação de factores, a nível global, totalmente imprevisíveis, que raramente (eu não tenho memória) aconteceram em simultâneo na história. Esse contexto que, em traços gerais, gerou um enorme desequilíbrio entre oferta e procura, propiciou que a oferta – que se tinha reestruturado, com fortes perdas e algumas falências, no tempo das vacas magras (leia-se fretes escandalosamente baixos) – pudesse beneficiar (e neste caso bastante) da enorme pressão da procura, e visse traduzido em ganhos o que anteriormente foram perdas acumuladas.
No fundo, e ainda que por causas conjugadas e imprevisíveis, aconteceu o que todos já sabíamos mas há muito não experienciávamos: o shipping sempre foi e será uma actividade cíclica. Neste ciclo a oferta está a ganhar mas sabemos que chegará o tempo em que a balança penderá para a procura.
T&N – No dia a dia, as companhias são também criticadas pela alta dos preços, pelos atrasos nas escalas, pela falta de capacidade, pelas taxas cobradas,… Como é que os Agentes de Navegação lidam com essas críticas dos clientes?
Belmar da Costa – É um facto que os Agentes de Navegação vivem também tempos complicados com a actual situação do mercado, e é importante referir que, apesar de os armadores de contentores estarem a anunciar lucros recordes, os Agentes de Navegação em nada são beneficiados por isso.
Relativamente ao mercado, os Agentes de Navegação são, muitas vezes, o saco de pancada dos clientes. Ora porque não têm equipamento (contentores) disponível, ora porque os navios não cumprem os timings, ora porque os navios não têm capacidade, ora porque os fretes estão altíssimos. É normal que isso aconteça e faz parte da génese da nossa profissão. Somos a face visível dos armadores nos portos e compete-nos representá-los no mercado nos momentos e naquilo que é bom, mas também no que, por vezes, é mau.
Os clientes, muitas vezes, não têm noção da “luta” diária e constante que, hoje, os Agentes de Navegação têm com os seus principais para proteger, da forma mais eficaz, os interesses dos seus clientes. Batalhar por equipamento e espaço nos navios passou a ser, não só uma prioridade, mas também altamente desgastante e, na situação actual, a maioria das vezes frustrante. Mas no fundo é isso que os clientes e também os nossos principais esperam de nós. Que consigamos os impossíveis. E é, no fundo, isso que fazemos todos os dias.
T&N – As crises actuais aceleraram alterações nas cadeias logísticas, nomeadamente com uma maior aposta na integração entre os modos marítimo e ferroviário. Os Agentes de Navegação estão preparados para o desafio da intermodalidade? E Portugal?
Belmar da Costa – Atrevo-me a dizer que Agentes de Navegação foram, provavelmente, os primeiros profissionais na cadeia logística a apostarem na integração e na intermodalidade. Manda a verdade que se diga que não o fizemos por sermos visionários, mas antes por pura necessidade. Os contentores não saem, nem chegam ao cais pelos seus pés e foi necessário ir construindo uma cadeia logística que garantisse um todo continuo do princípio ao final do transporte. Lembro-me de, na década de 80, conjuntamente com tantos colegas de profissão, irmos desenhando cadeias logísticas que integravam o camião e também já o comboio (apesar da sua pouca fiabilidade à época). Fomos, portanto, pioneiros.
T&N – As mesmas crises despertaram a Europa para a necessidade de relocalizar a produção, aproximando-a dos centros de consumo. Portugal está preparado para tirar partido dessa mudança?
Belmar da Costa – Portugal tem de estar preparado para tirar o máximo partido da mudança que a relocalização da produção irá ter. Temos, a meu ver, uma série de vantagens competitivas que seria, quase que um crime, não aproveitar. Temos uma situação privilegiada (atrever-me-ia a dizer que central no modo marítimo em relação ao continente europeu). Temos em fase final de construção um sofisticado software logístico (JUL). Temos uma enorme capacidade de profissionais de IT. Temos uma população que fala duas ou mais línguas, facilitando as comunicações. Temos uma geração altamente preparada para se movimentar/interagir no mercado e negócios globais. Temos profissionais ligados ao agenciamento de navios, aos trânsitos e operação logística, de altíssima qualidade. No fundo, os factores críticos de sucesso estão todos cá. Precisamos sim é de uma politica fiscal e aduaneira mais ambiciosa e, sobretudo, de um Estado que facilite ao invés de complicar.
T&N – Digitalização e Descarbonização são dois desafios prementes. Como avaliam o que já foi feito ou está sendo preparado nesse sentido, em Portugal?
Belmar da Costa – Portugal tem feito o seu caminho nestas duas vertentes. Não tenho dúvidas que estamos na linha da frente. Por vezes vamos até mais à frente (no caso do abandono da produção da energia por carvão), o que é criticável, do que os nossos parceiros europeus. Nesse sentido sou dos que acredito que num mundo mais digital e descarbonizado Portugal fica em vantagem. Esperemos que saibamos utilizar essa vantagem convenientemente (o que por vezes não tem acontecido).
T&N – Tudo sopesado, como vêem o shipping e a actividade marítimo-portuária no futuro próximo?
Belmar da Costa – O shipping tem sido a mola do comércio mundial ao longo dos tempos e não tenho dúvidas que continuará a sê-lo. Claro que no ínterim veremos muitas novidades, alterações, e diria mesmo uma verdadeira revolução. Navios autónomos, navios sem emissão de poluentes, cargas e descargas totalmente automatizadas, bookings/fretes dinâmicos, etc. serão realidades que vão chegando. Como não imagino outra forma de transportar matéria em grandes quantidades do ponto A para o ponto B sem ser recorrendo à via marítima, estou convicto que o shipping e a actividade marítima-portuária poderão ser um pouco diferentes do que conhecemos hoje, mas continuarão a ser críticos em termos de desenvolvimento global e continuarão a ser bem sucedidos.
Congresso em Setembro
“O Mar é tudo” é o mote do Congresso da AGEPOR, marcado para 23 de Setembro, em Cascais.
O Programa ainda está a ser afinado, mas são certas duas apresentações das conceituadas McKinsey e Clarkson Research (seguidas de mesas redondas com a participação dos dirigentes dos principais portos nacionais) e uma comunicação de Paulo Portas sobre a reindustrialização / nearshoring.
A descarbonização, a JUL, o Centro e Arbitragem Marítima e o lançamento do curso digital de iniciação ao shipping serão outros temas/momentos.
A terminar, Tiago Pitta e Cunha e Henrique Leitão conversarão com Miguel Marques sobre o tema do Congresso.