É apenas um dos vários anglicismos usados no jargão da aviação comercial que mais depressa associamos a casas de jogo do que a aeroportos. Têm uma coisa em comum: o “slot” certo no sítio certo pode valer milhões.
O que é um “slot” aeronáutico?
Quando um aeroporto se torna congestionado – ou seja, quando se encontra na sua capacidade máxima na maior parte das horas em que opera –, as normas internacionais ditam que esse aeroporto passe a ser coordenado através da atribuição de faixas horárias específicas de aterragem e descolagem às companhias que nele operam. Essas faixas horárias chamam-se “slots”. Por exemplo: no espaço aéreo europeu inteiramente liberalizado e em que qualquer companhia pode voar qualquer rota, este enquadramento legal permissivo pode não ser suficiente para que se possa voar entre duas cidades. No caso de uma rota que envolva pelo menos um aeroporto congestionado, existe uma aprovação prévia e necessária para que um voo seja comercialmente realizável, que corresponde à obtenção da faixa horária para operar regularmente esse voo no aeroporto. Entenda-se: esta autorização, ou “slot”, nada tem a ver com o controlo do fluxo do tráfego aéreo que é feito quotidianamente pelos controladores com base nos aviões programados para aterrar, descolar e voar em determinados corredores aéreos.
Porque um “slot” é tão importante?
A atribuição do “slot” num aeroporto congestionado é fundamental, porque garante o acesso a esse mercado. O seu impacto reflete-se a vários níveis: as faixas horárias atribuídas têm de integrar o ciclo operacional do aproveitamento dos aviões da companhia; o horário de partida e/ou de chegada é um dos critérios fundamentais para a escolha da companhia por parte dos passageiros; para as companhias que dependem de passageiros de ligação para o seu modelo de negócio, o horário tem de permitir o máximo de ligações possíveis a outros destinos; o tempo de escala no aeroporto (isto é, o tempo entre a aterragem do avião e a sua descolagem) deve ser o mais curto possível de forma a permitir a melhor utilização da frota e a respeitar os horários de operação dos aeroportos de partida e de chegada. Por exemplo: alguns aeroportos europeus não autorizam aterragens regulares depois das 23h00, pelo que o “slot” de partida do aeroporto de origem terá de permitir chegar a esse destino antes dessa hora.
Como se garantem os “slots”?
As companhias ditas de “bandeira” têm vários legados (daí serem chamadas “legacy carriers” em inglês). Um deles é justamente o dos “slots”. O princípio do direito histórico sobre os “slots” previamente adquiridos deu a estas companhias – como a TAP, Iberia, Alitalia, Air France, etc, – uma vantagem competitiva de, aquando do processo de liberalização do mercado aéreo, não terem perdido nenhuma das suas faixas horárias em uso. Muitas destas companhias, aliás, apressaram-se a ocupar o maior número de “slots” possível nos seus aeroportos-base, de forma a impedirem que os novos concorrentes tivessem acesso facilitado e em massa aos “slots” que ainda sobravam.
É (…) evidente que, com uma frota reduzida em pelos menos 20 aviões, vários “slots” antigos da TAP nunca mais poderão ser ocupados por falta de avião. Quando a situação voltar à “normalidade” – seja lá qual for o “normal” no futuro –, é necessário contextualizar o verdadeiro congestionamento do aeroporto de Lisboa, agora e para o futuro.
As autoridades responsáveis pela atribuição dos “slots” não fazem qualquer apreciação qualitativa do seu uso, ou seja, desde que usado em 80% das ocasiões previstas, este direito não expira. Pouco importa se o “slot” é usado para fazer, por exemplo, um voo Lisboa-Porto com um avião de 70 lugares e se a ocupação dessa preciosa faixa horária por esse voo em concreto impede uma outra companhia de lançar, por exemplo, um Lisboa-Gotemburgo com um avião de 180 lugares; pouco importa se, por causa da falta desse “slot”, uma outra companhia tem de desistir de expandir a sua operação para um segundo voo diário Nova Iorque-Lisboa, obviamente mais interessante para a economia do que o tal Porto-Lisboa.
Os “slots” vendem-se?
A prática atual obriga a este resposta: “Nim”. Existe uma enorme controvérsia legal sobre este aspeto, mas a verdade é que no aeroporto mundial mais disputado em termos de “slots” – Londres Heathrow – foram vendidas várias faixas horárias por preços astronómicos, que salvaram muitas companhias da bancarrota ou que lhes deram fundos para satisfazer os pedidos dos credores.
Recentemente, a Air New Zealand vendeu o seu “slot” londrino por 27 milhões de dólares, muito aquém da venda efetuada, em 2016, pela Kenya Airways à Oman Air, por 75 milhões de dólares. A questão aqui é que a Air New Zealand decidiu deixar de voar para Londres, ou seja, a companhia iria desistir desse “slot” de qualquer forma.
Na Europa continental, esta situação seria resolvida de uma outra forma: o “slot” desistido ou não usado não poderia ser vendido. Seria colocado à disposição de qualquer outra companhia interessada e atribuído de acordo com os critérios legais vigentes. Em Heathrow vigora um regime de trespasse de “slots”, uma possibilidade que é contestada noutros ordenamentos jurídicos.
O caso da Monarch em Gatwick é ainda mais intrigante: após a falência oficial da companhia, em Outubro de 2017, a entidade coordenadora dos “slots”, a ACL, informou a companhia que as suas faixas horárias lhe seriam retiradas por razões mais do que óbvias. A Monarch, que nunca mais voou, foi a tribunal com o intuito de obter a renovação da sua licença de operador aéreo apenas para recuperar os “slots” em Gatwick e vendê-los por inteiro e por um valor nunca revelado à British Airways. Após esta operação jurídica, a Monarch “voltou” a fechar oficialmente.
Existem “slots bons” e “slots maus” para a economia e turismo de uma cidade, região e país?
Como referido , a atribuição ou manutenção dos “slots” é feita sem qualquer apreciação da qualidade do uso que lhes é dado. Os critérios são puramente quantitativos.
Pegando no exemplo de Lisboa: se a TAP tem um “slot” de partida garantido e atribuído para as 17h00, esse “slot” pode ser ocupado por um voo para o Porto com um avião de 70 lugares, como pode ser usado para programar um voo para Conacri com capacidade para 180 passageiros, 99.9% dos quais está apenas em trânsito na Portela e sem qualquer contributo verdadeiro para o turismo Português – com sorte, talvez algum desses passageiros tome um café inflacionado enquanto espera pelo voo de ligação. Esse slot das 17h00 pertence, por assim dizer, à TAP e ela pode fazer dele o que entender, desde que o utilize em 80% dos casos durante o ano.
Vamos supor que uma companhia Japonesa manifestava interesse sobre esse “slot” das 17h00 para fazer um voo regular Tóquio-Lisboa trazendo centenas de turistas japoneses em voo direto para Portugal. Vamos supor que essa mesma companhia se vê recusado o “slot” das 17h00 por motivos de congestionamento e que, por motivos operacionais da sua rede e frota, não consegue aceitar outro horário alternativo, desistindo da operação de Lisboa. Neste caso, o coordenador que atribui os “slots” não pode dar “preferência” aos turistas japoneses por relação aos passageiros domésticos para o Porto ou aos passageiros em trânsito para Conacri e basear qualquer mudança ou atribuição do “slot” com base nesse critério qualitativo. À companhia japonesa resta esperar que, um dia, o “slot” das 17h00 volte a estar livre, ou que algo na sua operação permita aceitar um horário alternativo.
Nestas circunstâncias, e perante o impasse, talvez a solução britânica, ainda que controversa, permita maior fluidez e desbloqueie determinadas situações processuais e administrativas nefastas para a própria economia que se quer, na verdade, estimular.
O aeroporto de Lisboa vai continuar congestionado por quanto tempo?
O aeroporto de Lisboa é um aeroporto inteiramente coordenado, ou seja, para utilizar a Portela a transportadora aérea tem de dispor de uma faixa horária atribuída por um coordenador. No nosso país, a entidade designada para exercer a função de gestão dessas faixas horárias em aplicação do Regulamento (CEE) n.º 95/93, do Conselho, de 18 de janeiro de 1993, é a NAV Portugal – Navegação Aérea de Portugal, Entidade Pública Empresarial.
Devido à pandemia, a regra Europeia de utilização de 80% dos “slots” para os manter sofreu derrogações, e até este período de tolerância estar completamente ultrapassado o congestionamento e a falta de faixas horárias disponíveis em Lisboa é puramente fictícia. Não estão a ser usadas, mas estão “protegidas” e não podem ser atribuídas a mais nenhuma companhia aérea, mesmo a uma que, com ou sem pandemia, as queira efetivamente usar.
É igualmente evidente que, com uma frota reduzida em pelos menos 20 aviões, vários “slots” antigos da TAP nunca mais poderão ser ocupados por falta de avião. Quando a situação voltar à “normalidade” – seja lá qual for o “normal” no futuro –, é necessário contextualizar o verdadeiro congestionamento do aeroporto de Lisboa, agora e para o futuro.
O conceito da TAP – detentora de mais de 50% dos movimentos da Portela – implicou sempre usar a infraestrutura ao seu máximo em determinadas horas do dia. Isto explicou-se pela necessidade, por exemplo, de aterrar à mesma hora toda a sua frota de longo curso e de descolar toda a frota de médio curso nos 90 minutos seguintes para distribuir os passageiros intercontinentais por essa Europa fora. Esta pressão era puramente artificial e devia-se, em grande parte, à necessidade de fazer este transbordo de passageiros no menor tempo possível de forma a competir com outras companhias que desenvolvem o mesmo tipo de negócio.
Contrariamente à TAP, todas as outras companhias que operam de/para Lisboa não têm este conceito de plataforma na Portela. Isto traz consigo três enormes vantagens económicas:
– essas companhias transportam passageiros que têm origem ou destino Portugal. São estes os passageiros que, pelas mais variadas razões de turismo, negócios ou familiares, contribuem para a nossa economia;
– muitas dessas companhias têm maior flexibilidade na sua operação e podem distribuir as suas partidas e chegadas por faixas horárias distintas sem a necessidade de as concentrar todas num determinado momento;
– neste cenário de operação mais focada nos passageiros com destino ou com origem em Lisboa, é questionável a necessidade e o sentido da construção de um segundo aeroporto, em particular num momento de encruzilhada com os compromissos ecológicos e ambientais das próximas décadas que irão refletir-se, sem sombra de dúvida, numa das indústrias que coletivamente mais polui.
Existem bons exemplos de gestão e distribuição de “slots”?
Entendendo o “slot” como um bem raro – e, em alguns casos, caro – com um impacto económico, estrutural, operacional e ambiental de grandes dimensões para o aeroporto e para toda uma região, é importante zelar pelo tratamento transparente e racional deste tema.
Não basta uma companhia querer basear um avião no aeroporto de Lisboa e assim criar empregos e conetividade aérea – essa companhia vai depender sobretudo da disponibilidade de faixas horárias; não basta uma companhia chinesa considerar que existem condições ou incentivos de mercado suficientes para operar para Lisboa – no final, a operacionalidade do voo vai também depender dos horários autorizados para o realizar.
Recentemente, a Air France teve de abdicar de 18 pares de slots diários no aeroporto de Paris-Orly, onde tem uma posição dominante ainda que utilizando este aeroporto sobretudo para voos domésticos e para alguns dos territórios ultramarinos. Esta obrigação surgiu no âmbito de uma tentativa de compensação de mercado justificada pela recapitalização da companhia através de dinheiro público.
Para garantir o melhor uso possível destes valiosos “slots” num dos aeroportos mais congestionados da Europa, foi aberto um concurso público sujeito a determinadas condições e exigências, nomeadamente a de basear no aeroporto os aviões que usem esses “slots”, com a finalidade de manter e criar emprego local. Note-se que não existiu uma venda forçada dos “slots”, mas sim uma entrega dos mesmos à coordenação da navegação para sua redistribuição, para a qual se decidiu abrir um concurso público.
…de cada vez que a TAP abre uma rota de Lisboa para Banjul, Abidjan, Agadir, Cancun ou Fuerteventura (…) é a economia de transporte praticada nos Descobrimentos aplicada à aviação comercial.
O resultado deste louvável exercício de promoção do verdadeiro interesse público em causa foi a seleção da candidatura de uma companhia não francesa – a Vueling. Porquê? Esta companhia, para além de basear os maiores aviões da sua frota (os A321 com capacidade para 230 passageiros) e de criar empregos localmente, traz consigo grandes novidades a Orly. Em vez dos voos domésticos anteriormente ocupados por estes “slots”, quando eram da Air France, a Vueling operará 32 novas rotas para 10 países europeus, que se juntam às 20 rotas já operadas deste aeroporto pela companhia. Entre as novidades estão linhas inéditas para a Noruega, Alemanha, Malta, Marrocos, Irlanda e Suécia. Outra das novidades e mais valias da Vueling é o seu programa de passageiro frequente ligado a várias companhias da Oneworld (a aliança liderada pela British Airways e Iberia), os códigos compartidos com companhias dessa aliança que permitem maior e melhor distribuição mundial e a possibilidade de estimular algum tráfego de passageiros em ligação Norte-Sul via Orly. Claramente, Paris e toda a sua comunidade empresarial e de consumidores saíram a ganhar com esta “troca” e este processo tem tudo para dar certo.
Quais os maiores obstáculos ao crescimento da conetividade aérea e do turismo em Lisboa?
Se olharmos para os aeroportos do Porto e de Faro apercebemo-nos que o destino português com maior crescimento internacional neste milénio e o aeroporto que serve a região portuguesa líder do turismo internacional atingiram esses resultados com uma contribuição marginal da TAP.
Em ambos os casos, os objetivos alcançaram-se com base numa melhor conetividade aérea, numa diversificação de companhias aéreas, mercados e destinos que conduziu a uma maior acessibilidade e ao aumento exponencial do número de passageiros.
Para crescer agora e já em Lisboa não é preciso nem um segundo aeroporto, nem a TAP. É preciso, sim, terminar com os privilégios e proteções estatais inigualitárias e injustificáveis à TAP.
Voltando ao caso específico de Lisboa, o “açambarcamento de “slots”” pela TAP na Portela – recorde-se, mais de 50% – torna fisicamente impossível para outras companhias crescerem, basearem aviões, expandirem, gerar emprego e contribuírem para a economia nos mesmos termos. Por outro lado, de cada vez que a TAP abre uma rota de Lisboa para Banjul, Abidjan, Agadir, Cancun ou Fuerteventura, o que está em causa não é um desenvolvimento relevante da conetividade aérea com impacto na economia ou da região, mas sim, e sobretudo, um desígnio de cumprir um objetivo comercial puramente interno da TAP de atingir uma quota de passageiros em ligação de 70% – ou seja, apenas 3 em cada 10 passageiros têm origem ou destino em Portugal. Isto é a economia de transporte praticada nos Descobrimentos aplicada à aviação comercial.
À semelhança do que aconteceu em Paris Orly, que ganhou mais por cada avião da Air France que perdeu, também em Lisboa se passará o mesmo quando os poderes políticos tomaram as decisões certas. Para crescer agora e já em Lisboa não é preciso nem um segundo aeroporto, nem a TAP. É preciso, sim, terminar com os privilégios e proteções estatais inigualitárias e injustificáveis à TAP. Nesta equação, os únicos objetivos verdadeiramente importantes são a conetividade aérea e a manutenção de emprego na aviação comercial em Lisboa, sendo totalmente irrelevante as companhias que o farão.
Um regresso ao Futuro
Longe de imaginar que a humanidade alguma vez voaria, Séneca definiu sorte como “aquilo que acontece quando a capacidade se encontra com a oportunidade”. Ao ler esta definição, apercebo-me que a palavra “slot” que, nos casinos, nos remete para a sorte (ou azar) talvez não tenha sido escolhida ao acaso. Deixemo-nos guiar pela sabedoria da Antiguidade Clássica neste aspeto da aviação comercial moderna e confiemos mais na sorte do que na desvirtuosa e prejudicial intervenção estatal para crescer.
PEDRO CASTRO
Consultor em aviação comercial
Não sou entendido nesta matéria, mas face ao tão falado “Slot” vim explorar no Dr. Google, e encontrei este texto que me deixou quase esclarecido e totalmente perplexo. Obrigado Pedro Castro.
Porem acrescento alguns apontamentos:
1 – Todo o espaço de tempo de operação de um aeroporto, deveria pertencer a quem o dirige e/ou explora;
2 – Como qualquer aeroporto está sempre implantado em terrenos públicos, e sempre que se trate principalmente de ligações internacionais, o estado deveria ter uma mão no interesse do movimento deste aeroporto para a economia do pais ou duma região;
3 – Sendo assim não entendo como é que ainda no seculo XXI, a atribuição dos Slots tem meramente definições quantitativas;
4 – Não entendo ainda como é possível, uma companhia aérea negociar o seu slot, tirando dai dividendos, quando esta não é proprietária deste “espaço”;
5 – Pelo texto que li, e sendo o aeroporto uma infraestrutura do estado, então o mais lógico seria e como aconteceu no aeroporto em Paris, entregar os slots sobre determinadas condições e/ou através de propostas de companhias aéreas interessadas, e com prazos de validade;
6 – Na verdade e pela explicação que foi dada no seu texto, se Eu já era critico a construção de um novo aeroporto em Lisboa, agora concordo ainda mais que não se construa, mas sim que se reorganize o que temos, porque temso que aposta na qualidade e não na quantidade;
Posto isto, e pelo texto que li, e como cidadão comum, começo de facto a entender toda a trapalhada que vemos a volta da TAP. Gosto muito do que é nacional, mas só ate o ponto em quer não prejudique o país, porque a partir deste ponto deixa de interessar, e então anules-se ou alteres-se.
Cumprimentos
José Jesus