A recente notícia dos valores extraordinários de escalas de cruzeiros e volume de passageiros nos portos dos Açores corresponde a uma feliz consolidação de uma longa trajetória desenvolvida pela Região Autónoma dos Açores neste segmento, iniciada com a presença regular em feiras da especialidade por parte dos seus portos mais importantes, desde a década de 2000, e ainda com a construção do terminal de passageiros de Ponta Delgada, inaugurado em junho de 2008.
Mais recentemente, o facto de o porto de Ponta Delgada ter sido o primeiro porto nacional a acolher navios de cruzeiro, ainda durante a fase pandémica por COVID-19, constituiu um importante marco, com repercussões na forma como a indústria de cruzeiros, nomeadamente os operadores e os armadores, veem este arquipélago.
Entretanto, de pouco ou nada serve o aumento do número de escalas e do número de passageiros se tal não for acompanhado por uma estratégia de longo prazo que torne este destino atrativo, tanto para o porto como para o destino propriamente dito. Aliás, os itens acima referidos são apenas alguns dos indicadores do desempenho dos portos e destinos, sendo apenas os de maior facilidade de obtenção, mas embora dizendo muito pouco sobre o impacto do turismo de cruzeiros no destino. Indicadores como o impacto no PIB da região ou a geração de valor acrescentado (VAB) são muito mais importantes e essenciais para uma avaliação do impacto desse setor na economia.
Mais uma vez, e como em outros artigos já anteriormente publicados por mim, a articulação entre stakeholders do setor é vital, seja para o porto como para o destino de cruzeiros. A este respeito, a análise de Gui & Russo (2011)[i] é particularmente pertinente, destacando estes autores a abrangência da atividade de cruzeiros para os respetivos destinos. Reproduzo na figura a seguir as interações identificadas pelos autores, que formam a cadeia de valor do turismo de cruzeiro.
A multiplicidade de interações está perfeitamente ilustrada na figura acima. Sigamos o rasto da generalidade das setas e como tornam a companhia de cruzeiros o centro inevitável da abordagem das diferentes entidades. Estas ligações obrigam a que os agentes económicos, em cada destino de cruzeiros, se articulem entre si por forma a proporcionar e dinamizar uma imagem adequada e consistente do destino. A capitalização dos destinos de cruzeiros passa inevitavelmente por aí, com a agregação de esforços e compatibilização dos mais variados interesses.
…o destino da escala do navio de cruzeiro funciona sobretudo como uma amostra do destino turístico, por forma a que o passageiro regresse como turista e passe mais tempo no destino, já não apenas algumas horas, mas antes alguns dias, com um impacto financeiro para o destino turístico muito mais significativo.
Tão importantes como o impacto no PIB ou o VAB gerado, existem outros indicadores de caráter mais qualitativo, como sejam o nível de satisfação do destino e a intensão de repetição do destino enquanto turista. Estes dois indicadores revelam-se mesmo vitais no âmbito de uma perspetiva mais ampla, que envolve o crescimento do destino turístico no seu todo e não apenas numa perspetiva de destino de cruzeiro.
De facto, enquanto a escala do navio de cruzeiro permite apenas uma pequena amostra do destino para o turista de cruzeiro numa escala de poucas horas, é, contudo, uma forma muito importante de divulgação do destino turístico, promovendo uma viagem futura destes passageiros como turistas no seu sentido mais convencional.
Esta ideia é, aliás, fundamental para qualquer destino que se preze. Repito-a: o destino da escala do navio de cruzeiro funciona sobretudo como uma amostra do destino turístico, por forma a que o passageiro regresse como turista e passe mais tempo no destino, já não apenas algumas horas, mas antes alguns dias, com um impacto financeiro para o destino turístico muito mais significativo.
Outro aspeto muito relevante neste setor é o posicionamento do porto nesta indústria. Há três tipos de portos a considerar: os portos de escala, os portos com embarque e desembarque de passageiros (incluindo turnaround) e os portos base. No primeiro caso, o porto e o destino constituem apenas um ponto de escala, durante cerca de seis a oito horas, num itinerário predefinido do navio de cruzeiro. No segundo caso, o impacto na economia é muito superior ao da situação anterior, uma vez que o valor dos gastos dos passageiros no destino aumenta consideravelmente, decorrente da estadia dos passageiros em terra por mais dois ou três dias, antes ou após a entrada/saída do navio. Há ainda a considerar a situação do porto base, em que, para além do embarque e desembarque dos passageiros, o abastecimento e a manutenção dos navios, por exemplo, são outras atividades com um importante impacto na economia local.
A este respeito, portos como Miami ou Barcelona, cuja evolução no setor é a ilustração de um posicionamento face ao mercado com uma forte componente estratégica, constituem exemplos de como compatibilizar ambos os tipos de turismo, alavancando os destinos para um patamar único. Exigem-se, para o efeito, políticas integradas em volta de um desígnio comum entre porto e destino turístico, e em que o papel das instituições públicas é determinante no estabelecimento e a dinamização da visão a prosseguir, agregando os stakeholders em volta da consolidação da mesma.
Atentemos no exemplo da cidade de Barcelona, cuja proximidade permite-nos observá-la com maior atenção e curiosidade. Sabemos que esse porto movimentou mais de 3 milhões de passageiros em 2019, sendo 1,75 milhões em início ou final de cruzeiro e o volume remanescente de passageiros em escalas de trânsito. Este número de passageiros em início ou final de cruzeiro significa, em termos equivalentes, um volume superior a 10 mil voos comerciais por ano e, possivelmente, mais de três milhões de dormidas em estabelecimentos hoteleiros da cidade.
Ou seja, o facto de um porto se posicionar como ponto de embarque e desembarque de passageiros e, sobretudo, como ponto de início e final de um cruzeiro, constitui um forte elemento dinamizador da atividade turística da cidade, para além de incrementar a atratividade do seu aeroporto, com reflexo no número de ligações, destinos e, ainda, do número de companhias aéreas com atividade no aeroporto desse destino.
Para atingir este nível de desenvolvimento é necessário mais, muito mais do que puro acaso e sorte. É sobretudo necessário atuar nos momentos certos, chamando e ouvindo as pessoas certas, ou seja, os stakeholders (em bom português, as partes interessadas). Tudo aquilo que tem acontecido consistentemente em Portugal.
[i] Gui, L. e Russo, A.P. (2011). Cruise ports: a strategic nexus between regions and global lines-evidence from the Mediterranean. Maritime Policy & Management, 38(2), 129-150
LUÍS MACHADO DA LUZ
Assessor na empresa Portos dos Açores, S.A.
Doutorando do Programa Doutoral em Sistemas de Transporte, pela Universidade de Coimbra