Com a retórica agressiva da nova administração Trump a reavivar uma vaga de tarifas contra parceiros históricos como o Canadá, o México e agora a União Europeia, urge compreender a diferença entre tarifas e direitos aduaneiros, bem como as suas repercussões económicas, logísticas e geopolíticas. Uma análise crítica sobre o impacto nos portos europeus e no comércio global.
1. A retórica das tarifas está de volta. Mas com que consequências?
Em pleno século XXI, num contexto de profundas interdependências económicas, tecnológicas e logísticas, assistimos a um recrudescimento das práticas protecionistas protagonizado por um dos principais arquitetos da ordem económica liberal: os Estados Unidos da América. A nova vaga de tarifas impostas pela administração Trump, sob pretextos tão díspares como o combate à imigração ilegal, a luta contra o tráfico de fentanil ou a correção de défices comerciais, marca uma rutura com décadas de liberalismo económico.
Estas medidas não são meros instrumentos fiscais: são armas de pressão política e económica. E, tal como no passado, têm consequências reais e mensuráveis: aumento de preços, perturbação de cadeias de valor, perda de confiança nos mercados e crescente instabilidade geoestratégica.
Para compreender o alcance destas políticas, é fundamental começar por distinguir dois conceitos muitas vezes usados como sinónimos, mas substancialmente diferentes: tarifas e direitos aduaneiros.
2. Tarifas vs. Direitos Aduaneiros: uma distinção técnica com implicações políticas
Embora ambos sejam formas de tributação sobre bens importados, tarifas e direitos aduaneiros diferem na sua natureza, finalidade e enquadramento legal:
Aspeto | Tarifas | Direitos Aduaneiros |
Função principal | Instrumento político de regulação e retaliação | Mecanismo fiscal e regulatório |
Aplicação | Geralmente ampla, por categorias de produtos | Específica, por produto e código pautal |
Base de cálculo | Percentual sobre o valor de importação | Pode ser percentual, fixo por unidade ou híbrido |
Natureza jurídica | Decisão executiva (frequentemente unilateral) | Decorre de legislação nacional e acordos internacionais |
Flexibilidade | Elevada; pode ser imposta ou retirada rapidamente | Regra geral mais estável e previsível |
Finalidade geoestratégica | Protecionismo económico, pressão negocial ou retaliação | Arrecadação fiscal e controlo de fluxos comerciais |
Como sublinhou Ana Botín, presidente do Grupo Santander, numa entrevista à CNBC em Bruxelas (março de 2025), “as tarifas são um imposto. São, em última análise, um imposto sobre o consumidor. A economia pagará um preço: haverá menos crescimento e haverá mais inflação.” Esta visão resume de forma cristalina o seu verdadeiro impacto: tarifas não penalizam o exportador — penalizam o sistema económico do próprio país que as impõe.
3. A ofensiva tarifária de Trump: caos calculado ou estratégia de coerção?
Em fevereiro de 2025, a Casa Branca anunciou a imposição de tarifas de 25% sobre a maioria das importações provenientes do México e do Canadá, além de medidas adicionais sobre a China. Em março, anunciou tarifas de 25% sobre o setor automóvel europeu — uma decisão que atingiu diretamente a espinha dorsal industrial da União Europeia.
O mais paradoxal é que os países mais visados são precisamente aqueles que, durante a última década, mais colaboraram com os EUA no redesenho das cadeias produtivas globais. O México, por exemplo, tornou-se o maior fornecedor de componentes e veículos para os EUA. O Canadá tornou-se fonte estratégica de alumínio e aço para a indústria de defesa norte-americana.
Contudo, segundo o modelo G-Cubed, desenvolvido pelo Peterson Institute for International Economics (PIIE), as consequências económicas destas tarifas serão severas para todos — mas especialmente para os aliados mais expostos.
Figura 1 – Impacto no PIB real (% variação face ao cenário base, 2024–2040)
Como demonstram os dados, o PIB do México poderá contrair até 3,4%, o do Canadá até 2,3%, e o dos EUA cerca de 0,5%. A inflação, por sua vez, poderá disparar entre 3 a 4 pontos percentuais nas economias mais atingidas.
Figura 2 – Impacto na inflação (% variação face ao cenário base, 2024–2040)
A atual estratégia comercial da administração Trump, por mais errática que possa parecer à superfície, remete para uma lógica de ação deliberada que encontra precedentes históricos. Trata-se de uma adaptação contemporânea da chamada “Madman Theory” (Teoria do Louco), concebida por Richard Nixon nos anos 1970, segundo a qual um líder que se apresenta como imprevisível, irracional ou disposto a tudo ganha poder negocial por gerar medo e incerteza nos seus adversários. No caso de Nixon, essa postura visava condicionar a perceção dos líderes da União Soviética e do Vietname do Norte no contexto da Guerra Fria.
Este colapso da coerência estratégica norte-americana representa uma oportunidade para a Europa: reforçar a sua autonomia estratégica; afirmar-se como plataforma logística previsível e segura
Com Trump, o mesmo princípio é aplicado ao comércio internacional: os parceiros comerciais — incluindo aliados históricos — enfrentam uma administração que altera regras, impõe tarifas abruptas, recua e volta a atacar, cultivando deliberadamente a instabilidade como instrumento de coerção. Esta imprevisibilidade calculada destrói confiança institucional, mina alianças e força os outros a reagir sob pressão, tornando o comércio internacional um terreno de confronto mais do que de cooperação.
4. A resposta europeia e os impactos logísticos: cadeias de valor sob ataque
A União Europeia respondeu com prudência, mas firmeza. Bruxelas reativou tarifas suspensas sobre produtos norte-americanos e anunciou uma segunda vaga de contramedidas. No entanto, o verdadeiro impacto destas políticas será sentido nas cadeias logísticas e nos portos.
O setor automóvel é o mais atingido. Representando 10% das exportações da UE, a imposição de tarifas compromete a competitividade global dos seus fabricantes e afeta diretamente os portos especializados em veículos, como Zeebrugge, Bremerhaven, Valência e Setúbal.
Estima-se que o volume de exportações para os EUA possa cair até 30%, com efeitos nos terminais portuários, nos transportadores ro-ro e nas redes ferroviárias associadas.
5. O fim do friend-shoring: oportunidades perdidas e o colapso de uma narrativa
A rutura mais significativa, no entanto, é política. Os EUA, que outrora promoveram a ideia de friendshoring — deslocalizar cadeias de produção para países aliados e fiáveis — estão agora a punir esses mesmos parceiros.
Como escreveu o Atlantic Council, “México e Canadá trabalharam arduamente para substituir a China nas cadeias de valor americanas. Hoje, são tratados como inimigos económicos.”
Este colapso da coerência estratégica norte-americana representa uma oportunidade para a Europa: reforçar a sua autonomia estratégica; afirmar-se como plataforma logística previsível e segura; aumentar o seu peso relativo nas cadeias globais, através de acordos bilaterais com países como o Canadá, México, Japão, Reino Unido e Coreia do Sul.
6. Conclusão – A era da previsibilidade comercial terminou. E agora?
Vivemos o fim de uma era. A política tarifária agressiva da administração Trump representa uma rutura com o legado liberal e multilateral dos EUA. É uma estratégia de coerção, instabilidade e visão de curto prazo, com impacto profundo nas cadeias de abastecimento, nos portos e na confiança dos mercados.
Curiosamente, esta visão é também uma traição à própria história económica americana. Em 1987, o presidente Ronald Reagan advertiu, num discurso memorável, que o protecionismo “prejudicaria cada trabalhador e consumidor americano, faria os preços subir e, no fim, provocaria perdas de emprego.” Importa, no entanto, sublinhar que, nesse período, as cadeias de abastecimento globais não apresentavam o grau de interdependência sistémica que hoje caracteriza o comércio internacional. A sua extensão, complexidade e capilaridade eram significativamente inferiores, o que faz com que, no contexto atual, os impactos de medidas protecionistas sejam não apenas mais amplos, mas estruturalmente mais destrutivos.”
Os mais recentes desenvolvimentos confirmam as piores previsões. A administração Trump não só escalou a guerra tarifária global como aplicou tarifas de 104% à China, desencadeando uma resposta em espelho e generalizando o caos no comércio internacional. Segundo economistas como Paul Krugman, estas decisões não são fruto de uma doutrina económica estruturada, mas de uma estratégia de pressão errática e perigosamente amadora, que visa forçar os parceiros comerciais a ceder, mesmo à custa de implodir o próprio sistema.
No entanto, como sublinha o DHL Trade Atlas 2025, a resiliência do comércio global não deve ser subestimada. Os Estados Unidos representam 13% das importações mundiais, mas não controlam o destino da economia global. Outros blocos e nações reforçarão as suas relações bilaterais e multilaterais, contornando gradualmente a chantagem tarifária norte-americana.
Esta fase inicial será, inevitavelmente, marcada por desorganização e inflação, mas o realinhamento das cadeias de valor é possível — e até previsível. A jogada de risco da administração trump é clara: apostar que o mundo cederá antes de a sua própria economia ruir. Mas a grande questão mantém-se em aberto: quem cede primeiro — os Estados Unidos, ou o resto do mundo, que representa 87% das importações mundiais?

Portugal e a Europa devem posicionar-se estrategicamente neste contexto, não como vítimas passivas, mas como beneficiários ativos de uma nova geoeconomia multipolar. A oportunidade reside em investir na autonomia estratégica europeia e em reforçar os laços comerciais globais que irão emergir como resposta natural ao isolamento norte-americano.
LUÍS SILVA LOPES