Todos quantos estudamos ou trabalhamos na área do Shipping, nos vários negócios que dele fazem parte, direta ou indiretamente, certamente que reconhecemos que estamos a viver tempos extraordinários dos quais não há memória, sendo por isso algo de novo que merece toda a atenção, análise e interpretação, pois podemos estar a começar a viver uma nova realidade que afetará a economia a nível global, de forma permanente e não apenas temporária, como se tem a esperança que aconteça.
O nível dos fretes do deep sea atingiu valores nunca vistos, tendo como reflexo direto uma penalização das trocas comerciais que utilizam o modo marítimo, podendo resultar numa mudança radical dos atuais modelos existentes das cadeias de abastecimento.
Certamente que um dos primeiros reflexos diretos será um inevitável aumento dos preços dos bens que são transportados, e se tal não acontecer é porque afinal o impacto do custo do transporte marítimo sobre o produto transportado não é tão significativo como se pensa, pelo menos nos produtos com uma elevada resistência económica ao transporte.
Recentemente, o HSBC estimou que um aumento de 200% no custo do frete da carga contentorizada poderá ter um impacto nos custos dos produtos na zona Euro de 2%.
Toda esta conturbação resultou de uma situação em que, pela primeira vez, desde que me lembro, a procura de transporte marítimo de longo curso ultrapassou a oferta, tendo como consequência direta um significativo aumento dos valores dos fretes, como retrata o SCFI (Shanghai Containerized Freight Index).
Valores máximos e mínimos do frete marítimo ponderado/TEU ao longo dos anos
Como se pode facilmente verificar, a situação do aumento de fretes começou em 2020 e continuou em 2021, estando a conferir lucros significativos aos armadores de deep sea, com reflexos em todo o negócio do shipping, pois os valores de fretamento diário dos navios também aumentaram vertiginosamente, devido ao aumento da procura de espaço de transporte, não se importando de pagar valores de fretamento diário mais altos, e mesmo astronómicos, visto que são perfeitamente cobertos pelos elevados fretes que conseguem obter no mercado.
Se olharmos para o mapa da Alphaliner dos “Top 100 container carriers verifica-se que, salvo algumas exceções, a maioria dos grandes armadores tem uma significativa parte da sua frota afretada a tempo (>50%), ficando sujeitos a aumentos significativos dos seus custos quando esses contratos forem renovados, razão pela qual foram aparecendo notícias de que alguns armadores começaram a exercer a opção de compra dos navios que os contratos de fretamento lhes proporcionavam, fazendo-o a preços de 2018 e não a preços atuais, com todas as vantagens que daí advêm.
Um dos casos mais notórios foi o de um dos grandes armadores ter exercido a opção de compra de 18 navios, com capacidades entre os 1.100 e os 4.400 TEU os quais tinham uma idade de 25 anos, o que é notável se tivermos em consideração o expetável tempo de vida de um navio, mostrando a importância de, neste momento, os armadores manterem ou aumentarem toda a capacidade de carga que for possível.
Então como se chegou a esta situação?
Em primeiro lugar, convém lembrar a razão do aumento da dimensão dos navios.
Talvez não se lembrem, mas no final do século XX previa-se que a dimensão máxima dos navios fosse os 18.000 TEU. O chamado Malaccamax, ou seja, o navio com as dimensões máximas para passar em segurança o estreito de Malacca, um dos três principais constrangimentos da navegação no Mundo, juntamente com o Canal do Suez e o Canal do Panamá.
Pontos de restrição de dimensão de navios
Como se sabe, a capacidade dos navios continuou a aumentar muito para além dos 18.000 TEU, sem ultrapassar o calado máximo aceitável para passar pelo estreito de Malacca, crescendo-se em comprimento, boca e com um desenho que permite maior capacidade de carga sem aumentar em calado.
Na altura, os maiores navios tinham uma capacidade de 8.000 TEU e um dos grandes armadores (Evergreen) declarava então que não iria acompanhar o crescimento desmesurado da dimensão dos navios, tendo, passados alguns anos, mudado de ideias, sendo atualmente um dos armadores que está com encomendas de navios de 24.000 TEU (6 no total), em oposição às novas construções da Maersk de navios de 16.000 TEU.
Em abono da verdade, a Evergreen não está apenas a encomendar navios de grandes dimensões, pois em Março passado encomendou 20 navios de 15.000 TEU e recentemente encomendou 24 navios de menores dimensões (11 x 3.000 TEU + 11 x 2.300 TEU + 2 x 1.800 TEU) possivelmente para os seus serviços de feedering.
Na mesma altura, os portos dos EUA declaravam que não iriam investir nos portos para receber os navios de grandes dimensões, mas com o passar do tempo também foram evoluindo na sua capacidade de receber navios maiores.
Como exemplo, Long Beach está preparado para receber navios de 22.000 TEU em dois dos seus seis terminais.
Mas qual a razão desta corrida à utilização de navios cada vez maiores, quando se estava a injetar no mercado um excesso de capacidade de carga, muito para além das previsões do crescimento do mesmo, e que tinha reflexo direto nos valores dos fretes, que eram cada vez mais baixos, numa tentativa de encher estes navios e captar quota de mercado?
A razão é simples e transversal a todos os negócios e chama-se economia de escala.
Durante mais de uma década, os armadores entraram num chamado círculo vicioso, aumentando a capacidade dos navios para reduzir o custo unitário dos slots (espaço de 20’ = 1 TEU) e assim poderem reduzir os fretes e conquistar mais carga, mas como todos faziam o mesmo, tinham que voltar a aumentar a sua capacidade para reduzir o custo dos slots, levando-os a mais de uma década de resultados negativos dos quais estão agora a recuperar, num inesperado ciclo ascendente do Shipping, como nunca se verificou antes.
Quando se analisam os resultados líquidos trimestrais de um conjunto de linhas de contentores verifica-se que até ao primeiro trimestre de 2020 os resultados negativos sobrepunham-se aos positivos, e até esse momento não havia razão para se pensar que poderia ser diferente.
Com os resultados que as linhas estão atualmente a obter isso significa que estão, finalmente, a recuperar os investimentos e o esforço de mais de uma década.
Embora exista quem entenda que os fretes atuais são incomportáveis e exagerados, durante mais de uma década nunca houve nenhuma referência de que os mesmos eram exageradamente baixos e que prejudicavam as empresas que os ofereciam.
Era o mercado a funcionar, estando na altura do lado da procura, tal como agora está a funcionar para o lado da oferta.
Conforme já foi mencionado no TRANSPORTES & NEGÓCIOS, a Blue Alpha Capital referiu que: só no último trimestre do ano passado é que o sector entrou nos lucros no acumulado dos últimos cinco anos e que considerando os últimos 22 trimestres (cinco e anos e meio), os lucros acumulados são de apenas 54,9 mil milhões de dólares, o que representa uma margem de menos de 4% sobre as receitas, o que não é de todo exagerado.
Mas os armadores não são os únicos a apresentar atualmente excelentes resultados.
O mercado do transporte marítimo de deep sea de carga contentorizada continuará a estar do lado da oferta, pelo menos durante o próximo ano de 2022, continuando também os congestionamentos nos portos, principalmente na costa Oeste dos EUA e em alguns dos portos chineses.
A Lloyds Loading List, referindo uma análise da Xeneta, mostra que as margens de lucro dos armadores de contentores (deep sea) subiram dos 5%, no primeiro trimestre de 2021, para os 30%, no segundo trimestre.
Mas os transitários também viram aumentar as suas margens de lucro, de 3% no primeiro trimestre de 2021 para 8% no segundo trimestre, mostrando que também estão a aproveitar o bom momento do mercado e o aumento dos fluxos de carga.
Quanto ao futuro no curto e médio prazo, tudo indica que a situação atual veio para ficar.
A procura por serviços de transporte marítimo de carga contentorizada deve continuar a aumentar, com base na previsão do FMI de julho de 2021, na qual refere que após a contração de 3,2% em 2020 a economia Mundial deve crescer 6% em 2021 e 4,9% em 2022, com um maior crescimento na Ásia, de 7,5% globalmente, prevendo um crescimento de 9,5% da Índia e de 8,1% da China.
Nas economias desenvolvidas prevê um crescimento de 5,6% para os EUA e de 7% para o Reino Unido.
A Comissão Europeia espera um crescimento na zona Euro de 4,4% em 2021 e de 4,5% em 2022.
A estes dados temos de acrescentar o facto de se estarem a “fechar” contratos de fretamento de navios porta-contentores a 4 e 5 anos com taxas de hire diário 5 a 8 vezes mais altas do que no mesmo período do ano passado, representando aumentos de 500%, como nos mostra o gráfico da ConTex e as tabelas da Dynaliners.
Evolução dos valores de hire diário de navios porta-contentores Jan 2019 a Ago 2021
Valores de fretamento diário de navios porta-contentores Jun/Jul 2021 vs Jun/Jul 2020
Valores de fretamento diário de navios porta-contentores Agosto 2021
Como se pode constatar pelos elementos acima apresentados, as taxas de fretamento diário dos navios porta-contentores são atualmente muito elevadas e tudo indica que vieram para ficar.
Quando se pensaria que devido aos elevados valores em causa, os contratos de fretamento fossem “fechados” por períodos de 6 meses, a fim de permitir a sua renegociação assim que o mercado se alterasse, os factos mostram que assim não é, estando a “fechar-se” contratos com elevadas taxas de fretamento diário a prazos de 48 a 60 meses, o que certamente trará impactos diretos nos fretes marítimos.
O transporte marítimo de carga contentorizada intra-europeu e feeder deverá ver os seus fretes aumentar significativamente, o que pode ter impacto negativo na opção da solução intermodal de base marítima, resultando numa transferência modal para a solução unimodal rodoviária.
Se considerarmos que o custo diário do navio representará cerca de 25% a 30% do valor do frete marítimo, um aumento de 400% a 500% do fretamento diário representará um aumento do frete marítimo de 100% a 150%, devendo ser esperado que tal venha a acontecer em breve no short sea, intra-europeu e feeder.
Os armadores que são proprietários dos seus navios, e não afretadores dos mesmos, terão a oportunidade de aumentar a sua rentabilidade ou a sua competitividade, neste último caso mantendo os fretes a níveis mais baixos.
Para o transporte intermodal intra-europeu de base marítima, será um período complicado, pois poderá deixar de ser uma solução competitiva e perder quota de mercado para o transporte unimodal rodoviário.
Podemos, assim, tirar algumas conclusões dos factos que o mercado nos tem apresentado.
O mercado do transporte marítimo de deep sea de carga contentorizada continuará a estar do lado da oferta, pelo menos durante o próximo ano de 2022, continuando também os congestionamentos nos portos, principalmente na costa Oeste dos EUA e em alguns dos portos chineses.
Os fretes altos no deep sea devem estar aí para ficar durante os próximos anos com um impacto no preço dos produtos de pelo menos 2%.
O transporte marítimo de carga contentorizada intra-europeu e feeder deverá ver os seus fretes aumentar significativamente, o que pode ter impacto negativo na opção da solução intermodal de base marítima, resultando numa transferência modal para a solução unimodal rodoviária.
Estamos a viver momentos extraordinários no mundo do Shipping os quais merecem a nossa atenção porque será certamente um caso de estudo que permitirá tirar conclusões sobre o possível futuro da globalização e da economia Mundial.
JOÃO SOARES