A globalização trouxe ao mundo a possibilidade de enviar televisões e uma outra imensidão de aparelhos eletrónicos, do extremo oriente para qualquer parte do mundo a custos extremamente reduzidos, quando pensados numa economia de escala. O conceito levou igualmente a que, neste momento, a maturação do mesmo esteja de tal modo impregnado em tudo o que consumimos, que o mundo dos transportes e cadeias logísticas é hoje apresentado como um serviço à escala global.
Contudo, e após algumas dores de crescimento do modelo durante a sua evolução, assistimos hoje à falta de chips, que põem em causa a normalidade de muitos destes fluxos, às quebras devido a ataques informáticos, a alguns eventos “anormais” no mundo do Shipping – como o bloqueio recente do Canal do Suez durante alguns dias, contentores fora de bordo em números nunca antes vistos e, mais recentemente, e com grande impacto não apenas ambiental mas também material, ao incêndio que durante dias deflagrou num porta contentores com apenas 3 meses de idade no Sri Lanka, depois do derrame de substâncias mal acondicionadas, de acordo com as informações disponíveis, que levaram à perda da carga, e do próprio navio em si, mais provavelmente, não deixando para trás os impactos causados por uma coisa quase nova até então, uma pandemia.
Fazer o Transporte como um Serviço permite ao “transportador” de uma determinada mercadoria aumentar a sua eficiência operacional, nas rotas e no consumo de combustível, mas igualmente proporcionar o acesso a outros serviços que lhe possam trazer mais valor, gerindo as plataformas digitais, dando previsibilidade e visibilidade das cargas enquanto estão à sua guarda, garantindo ao cliente o cumprimento das normas ambientais e valorizando as mesmas no transporte dos bens de um ponto ao outro. Os vários modos de transporte por onde a carga vai passando são, por vezes, até desconhecidos pelo proprietário da mesma.
Os serviços, hoje em dia, são isso mesmo. Deixámos de nos preocupar com certos detalhes, e preocupamo-nos com outros, nomeadamente o preço e o tempo. Mas para o transporte global têm sido vários, como disse, os “ataques” revelados, ou melhor diria, expostos e aguçados durante esta pandemia. É certo que os operadores do transporte marítimo encontraram forma, na sua maioria, de conseguir tirar os seus dividendos, revelando relatórios de contas espetacularmente positivos para os tempos que atravessamos, aproveitando um abaixamento do preço dos combustíveis, conjugado com o tão badalado preço dos fretes que tem crescido enormemente nos últimos meses, consequências dos mercados e dos “ciclos” do Shipping. De acordo com a Alphaliner, 5 dos operadores presentes no Top10 realizaram mais no primeiro trimestre de 2021 do que em todo o passado ano de 2020.
A relação da contratação de um serviço, hoje em dia, assenta na maior parte das vezes, como disse, na relação preço/tempo, mas temos que nos habituar a pelo menos ambicionar uma maior qualidade na prestação do serviço.
A digitalização fez, e continua a fazer uma parte do trabalho no lado marítimo, para o transporte conseguir ser realmente global, com comunicações globais, aparecendo soluções que uniformizam cada vez mais a comunicação controlada e ordenada pelos canais digitais.
Mas será que estaremos a dar a devida importância à vertente da qualidade na parte do serviço?
É certo que fenómenos meteorológicos não estarão dependentes dos humanos no curto prazo para serem alterados, e o número de unidades que caíram este ano para o mar, resultando na sua perda e das cargas, foi enorme quando comparado com anos anteriores. Poderiam as rotas ter sido alteradas em função da meteorologia? Os grandes e os pequenos navios poderiam prejudicar o tempo em favor da integridade das cargas, adicionando qualidade ao serviço prestado.
Dependemos também como um todo, no caso da proteção contra a pandemia que atravessamos. Os novos surtos no Sul da China trouxeram outra realidade no congestionamento portuário que se faz sentir naquela zona, depois de quase passadas as tormentas na costa americana do Pacífico. São quase uma centena de navios parados à espera de cais, mais de metade navios de transporte de contentores. E, novamente, as mercadorias paradas, encurraladas, e mais uma vez a qualidade do serviço a pender para o incontrolável, restando apenas esperar, tendo já pago por um serviço que tarda em chegar ao fim.
Também o atravessamento registado no Canal do Suez, mais recentemente, que levou ao bloqueio completo de uma das mais importantes rotas mundiais, fez soar os alarmes no mundo do transporte marítimo global. Uma vez mais a qualidade do serviço foi afetada, e algumas mercadorias ficaram inclusivamente retidas a bordo, como garantia das compensações pedidas pela Autoridade do Canal do Suez.
E como pode o cliente resolver ou antecipar estes problemas, ou simplesmente ser ressarcido por danos no serviço contratado?
Os incêndios registados nos navios, muitos deles tendo início em cargas perigosas ou mal-acondicionadas, são outro flagelo que tem levado não apenas à perda, por vezes total, de mercadorias transportadas nesse navio – e não apenas daquelas de onde provieram os problemas inicialmente – bem como à perda completa de navios, pondo em risco o ambiente, mas também as tripulações. Uma vez mais, poderá o cliente mudar este rumo, visto que lhe interessa a relação preço/tempo quando faz uma encomenda noutra qualquer parte do mundo?
Os acidentes com navios, quer entre si, quer em instalações portuárias, e os acidentes nos portos mostram outra fragilidade do sistema. Assistimos a encalhes de navios, explosões que dizimaram completamente portos e suas zonas adjacentes (Tianjin e Beirute, por exemplo) e a colisões de navios com o cais, ou outros navios atracados, ou ainda com gruas portuárias que levam a meses de inatividade das estruturas nessas zonas. E as cargas a bordo desses navios, bem como as restantes cargas depositadas nos portos que sofreram esses danos? Uma vez mais ficam “perdidas” e os consumidores privados das mesmas, por tempo indeterminado. A qualidade do serviço fica outra vez órfã para o cliente final.
Os preços dos fretes registados nos últimos tempos têm sido objeto de críticas a nível mundial, e encontram-se em valores nunca antes vistos. Para mitigar estes custos, os operadores injetam uma quantidade enorme de equipamento nos seus loop’s, mas depois continuamos com os problemas de congestionamentos e bloqueios na cadeia, que apenas deixam mais equipamento parado, sendo que também os navios adotaram de novo o slow steaming (redução de velocidade), aumentado o número de navios necessários nas rotas, mas tendo alguma redução com os custos de combustíveis, subindo obviamente o tempo de trânsito para o transporte de mercadorias – cerca de mais 20% hoje em dia – e uma vez mais a qualidade do serviço a baixar.
Talvez a falta de escolha atualmente existente, fruto das fusões e aquisições que se têm verificado nos últimos anos no mundo do Shipping, traga nos próximos anos uma nova guerra na regulamentação do mercado por estes operadores de topo, que congregam a quase totalidade do transporte marítimo.
É realmente difícil orquestrar um plano de transporte que, de algum modo, passe ao lado de todos estes constrangimentos, tal como é garantir um transporte que na realidade cumpra todos os requisitos de acondicionamento de cargas, durante o seu trajeto ao longo da cadeia de abastecimento, de modo a garantir a qualidade do serviço contratado de transporte.
A relação da contratação de um serviço, hoje em dia, assenta na maior parte das vezes, como disse, na relação preço/tempo, mas temos que nos habituar a pelo menos ambicionar uma maior qualidade na prestação do serviço. As variáveis existentes são globais, é certo, aumentando assim a incapacidade de controlo das mesmas, mas temos que ser capazes de globalmente ser mais previsíveis e sustentáveis, a julgar pelos pregões que têm sido anunciados pelas instituições mundiais do transporte marítimo.
PEDRO GALVEIA