No passado, em situações de guerra em larga escala, os Estados beligerantes tornaram o setor de transportes marítimos numa das principais componentes da sua estratégia. A tentativa de perturbar ou quebrar as cadeias de abastecimento do inimigo fazia com que os navios da marinha mercante estivessem envolvidos logo de início. Vale a pena trazer à memória os onze navios mercantes portugueses (cargueiros e pesqueiros) que foram afundados no Atlântico e no Mediterrâneo, durante a II Guerra Mundial.
Em 2022, não estamos em presença de um conflito direto entre grandes potências mundiais como há 80 anos, mas no contexto da globalização da economia mundial qualquer guerra regional tem potencial para se tornar numa grave perturbação para o comércio marítimo e para as economias de todos os países. Vladimir Putin e Xi Jinping incluem esse fator nas suas estratégias. O primeiro na sua ambição de criar uma “Grande Eurásia”, centrada em Moscovo, e o segundo a tentar concretizar a criação de uma rede de infraestruturas e serviços, comandada em Pequim, utilizando financiamentos a países em dificuldades financeiras (por exemplo, Grécia e Portugal) ou a países que não encontraram alternativas reais (dos EUA ou da UE) para apoiar o seu desenvolvimento (por exemplo, Angola e Moçambique).
Por vezes, fica-se com a sensação que os governantes dos EUA e da UE andaram confortavelmente a gozar dos benefícios imediatos da globalização e esconderam aos povos as suas fraquezas e os graves problemas com que as economias podiam vir a defrontar-se. Esses governos passaram agora a referir a absoluta necessidade de diminuição da dependência do abastecimento de matérias primas e de produtos transformados junto da Rússia ou da China e a vontade de construir cadeias de abastecimento mais resilientes. Mas as empresas globais não mostram sinais de, por orientações políticas, fazerem haraquíri desmontando os sistemas que organizaram nos últimos 20 anos e cujos fundamentos de negócio se mantêm.
Invasão pela Rússia – Guerra na Ucrânia
Rússia e Ucrânia têm um papel dominante no mercado internacional de produtos agroalimentares, o que gera grande preocupação para a segurança alimentar mundial. Para além disso, segundo a UNCTAD[i], mais de metade do aumento de preços dos cereais no mercado internacional decorre do aumento das taxas de frete do transporte marítimo a granel.
A interrupção das operações portuárias na Ucrânia, a destruição de infraestruturas, as restrições de abastecimento decorrentes das sanções económicas, o aumento dos preços dos seguros e os elevados preços dos combustíveis tornaram-se obstáculos logísticos e contribuíram para o aumento das taxas de frete e para um ambiente imprevisível no transporte marítimo.
Por vezes, fica-se com a sensação que os governantes dos EUA e da UE andaram confortavelmente a gozar dos benefícios imediatos da globalização e esconderam aos povos as suas fraquezas e os graves problemas com que as economias podiam vir a defrontar-se.
Muitos países tiveram de pôr-se em campo e procurar fornecedores alternativos de petróleo, gás natural e cereais em paragens longínquas. Consequentemente, as distâncias de transporte marítimo (tonelada-milha) aumentaram, e bem assim os “transit-time” e os custos em geral.
Preparativos de guerra pela China no Estreito de Taiwan
O estreito de Taiwan é uma das zonas mais movimentadas do transporte marítimo mundial (em particular, contentores e gás natural liquefeito). Qualquer tráfego entre o Ocidente, o Sudoeste Asiático e o Norte da China, a Coreia do Sul e o Japão tem o Estreito como a sua rota principal. Passar a leste de Taiwan significaria um desvio importante. Também para os navios que operam entre o sul da China e os EUA a passagem pelo Estreito é a rota mais direta.
Segundo a Bloomberg, metade da frota global de contentores e 88% dos maiores navios do mundo em tonelagem passaram pelo Estreito em 2022.
Taiwan é um elo fundamental nas cadeias globais de abastecimento em tecnologia. A Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, Limited (TSMC) detém mais de 90% da capacidade mundial da produção de “chips”. Uma quebra prolongada na logística da TSMC criaria uma situação catastrófica na indústria tecnológica.
Na semana de 4 de agosto, os preparativos da China levaram ao desvio de mais de 200 navios e alguns armadores proibiram os seus navios de transitar pelo Estreito. Alguns fornecedores de gás natural liquefeito afirmaram que os navios por si contratados deixaram de passar pelo Estreito até poderem confirmar que os exercícios militares terminaram.
Não podemos esquecer que Taiwan é a sede de empresas que no seu conjunto controlam a quarta maior frota mundial de navios porta-contentores e mais de 100 navios VLCC (very large crude carriers). A Evergreen (190 navios, 850.000 TEU) e a Yang Ming (100 navios, 643.000 TEU) são operadores de linhas de contentores (número 6 e 9 do ranking mundial em capacidade instalada) e a primeira integra a The Alliance (com a ONE, HMM e Hapag-Lloyd). Ambas as empresas operam nos terminais de contentores dos principais portos da China.
Os analistas de geopolítica internacional afirmam que existe um sério risco de guerra no Estreito de Taiwan, envolvendo a China e os EUA, durante a próxima década.
Momentos difíceis
A guerra na Ucrânia, os novos surtos de COVID-19, a abordagem “zero-COVID” da China, o congestionamento nos portos, a necessidade de mudança para combustíveis de baixo carbono e a possibilidade de uma recessão na economia mundial são as questões que dominam a envolvente do transporte marítimo.
Navios bloqueados em porto, navios com tripulantes retidos durante muitos meses (COVID-19 e guerra na Ucrânia), navios que saem de portos sob risco de serem bombardeados e atravessando zonas minadas, escassez de tripulações (os tripulantes nacionais da Rússia e Ucrânia no seu conjunto representam 14% do total mundial) são alguns dos fatores que afetam os custos dos armadores.
Momentos surpreendentes
Em 3 de agosto, a Maersk anunciou um EBITDA de USD 19,4 mil milhões no primeiro semestre de 2022 e a previsão de USD 37,0 mil milhões para o valor anual. Os seus gestores apontam para que tudo volte ao normal no final do ano. O “normal” da Maersk são taxas de frete superiores às de antes da pandemia COVID-19 o que acompanhado de uma cuidadosa gestão da capacidade oferecida irá gerar bons lucros em 2023.
Refere o CEO Skou, citado pelo joc.com[ii]: “O que importa no transporte de contentores não é tanto quantos navios tem a frota, mas qual a capacidade das nossas redes em comparação com a procura”. “Se recuarmos ao ano de 2020 vemos essa política em ação: no primeiro trimestre a procura estava em baixo, no segundo trimestre caiu 15%, mas os preços permaneceram estáveis porque todas as redes ajustaram a capacidade e desativaram a tonelagem em navios que não era necessária”. “No futuro a nossa filosofia de operação da rede irá manter-se. Iremos oferecer a capacidade de que os nossos clientes necessitem e não iremos operar com toda a capacidade a não ser que tal se torne necessário”.
Mas em 2023 o mercado de navios porta-contentores será inundado de novas construções. Veremos se todos os armadores vão seguir a atitude disciplinada da Maersk.
[i] “The War in Ukraine and its Effects on Maritime Trade Logistics”, UNCTAD, 28th June 2022.
[ii] “Falling rates no threat to profitability: Maersk”, Greg Knowler, Journal of Commerce online, Aug 03, 2022.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos
Esclarecedor.