Creio que já todos percebemos que a expressão “Combustíveis Alternativos” é um logro quando utilizada para sugerir que se trata de substitutos diretos e sem desafios dos combustíveis fósseis e não apenas opções ainda em desenvolvimento, algumas de duvidosa viabilidade. Muitos combustíveis chamados de “alternativos” enfrentam desafios de produção, custo e infraestrutura.
Alguns analistas preveem que o hidrogénio verde estará comercialmente disponível em larga escala em 2035, e que os e-fuels produzidos a partir de hidrogénio verde e dióxido de carbono (CO₂) capturado estarão acessíveis dentro de 10 anos.
É neste contexto de incerteza que os promotores da energia nuclear para a propulsão de navios mercantes como a Core Power (parceria com a TerraPower e outras empresas de energia nuclear)[i], que explora a viabilidade dos reatores de sal fundido para propulsão marítima, apresentam estudos e projetos e prometem que também estarão prontos para comercializar dentro de 10 anos.
Vantagens
Os promotores da energia nuclear apresentam diversas vantagens em relação aos combustíveis renováveis quando aplicada à propulsão de navios mercantes. Os principais pontos fortes são:
- Um reator nuclear pode operar durante anos sem necessidade de reabastecimento, enquanto os combustíveis renováveis, como biocombustíveis ou hidrogénio, exigem reabastecimento frequente.
- O urânio tem uma densidade energética milhões de vezes superior à dos combustíveis fósseis e renováveis, permitindo viagens muito longas sem paragens.
- A energia nuclear não gera emissões de CO₂ ao contrário dos biocombustíveis, que ainda produzem CO₂ na combustão. A propulsão nuclear não emite gases de efeito de estufa.
- Alternativas como o hidrogénio verde e a amónia requerem armazenamento criogénico ou grandes baterias, que aumentam o peso e reduzem o espaço de carga útil do navio.
- Biocombustíveis, hidrogénio e amónia requerem redes de produção, distribuição e armazenamento específicas, que ainda estão em desenvolvimento. Já o nuclear requer apenas infraestruturas especializadas para reabastecimento esporádico.
- Navios nucleares não precisam de portos específicos com infraestrutura para reabastecimento ao contrário dos combustíveis renováveis.
- A energia nuclear não depende de condições climáticas. Ao contrário de algumas soluções renováveis que dependem de energia solar ou eólica para produção de combustíveis sustentáveis, a energia nuclear fornece potência estável e contínua.
- O nuclear pode fornecer potência elevada e constante, essencial para grandes navios de carga e operações em rotas de longa distância.
- Apesar do elevado custo inicial, um reator nuclear tem menor custo operacional ao longo do ciclo de vida do navio.
Desafios
A energia nuclear apresenta desafios e desvantagens em comparação com os combustíveis renováveis na propulsão de navios mercantes. Os principais pontos fracos são:
- Um elevado investimento inicial – a construção de um navio com propulsão nuclear é significativamente mais cara do que um navio movido a combustíveis renováveis, devido à necessidade de um reator nuclear, sistemas de segurança e infraestrutura especializada.
- O funcionamento seguro de um reator nuclear exige equipas altamente especializadas e rigorosos procedimentos de manutenção, o que aumenta os custos operacionais.
- Muitos países e portos podem restringir ou proibir navios com propulsão nuclear devido a preocupações com segurança e possíveis acidentes.
- A utilização de reatores nucleares em navios mercantes pode enfrentar barreiras regulatórias internacionais, exigindo acordos e licenças que tornam sua adoção mais difícil.
- Apesar dos avanços na segurança nuclear, acidentes como Chernobyl e Fukushima tornaram a opinião pública sensível ao risco de falhas nucleares, mesmo que as tecnologias modernas reduzam significativamente esses riscos.
- Um navio nuclear poderia ser um alvo estratégico para ataques terroristas ou piratas, exigindo protocolos de segurança reforçados e aumentando o risco geopolítico.
- O urânio enriquecido ou outros combustíveis utilizados nos reatores necessitam de armazenamento seguro a longo prazo, representando um desafio logístico e ambiental.
- Após anos de operação, o reator precisa ser desativado ou substituído, exigindo processos complexos de descomissionamento.
- Enquanto os combustíveis renováveis, como o hidrogénio, amónia ou biocombustíveis, podem ser utilizados em motores adaptáveis, um navio nuclear exige um design específico e dificilmente pode ser convertido para outra tecnologia no futuro.
- O urânio enriquecido para uso marítimo pode ser fornecido apenas por um número limitado de países e empresas, criando riscos de disponibilidade e geopolítica.
Relatório da EMSA [ii]
São 584 páginas que merecem ser consultadas e onde no sumário executivo se pode ler:
“O setor marítimo não é a única indústria com o objetivo de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa (GEE); ele enfrenta concorrência da aviação, do transporte rodoviário e de outros setores na corrida pela energia com neutralidade carbónica. Para cumprir as metas de redução de emissões, a produção de alternativas de combustível neutras em carbono deve aumentar significativamente, o que pode gerar incertezas na oferta e flutuações nos preços. Como resultado, os armadores precisam considerar todas as oportunidades, como a flexibilidade de combustível, para enfrentar esses tempos incertos.
Até agora, a energia nuclear tem sido utilizada principalmente para fins militares e para a propulsão de quebra-gelos no Ártico. No entanto, a nível europeu, a energia nuclear foi identificada como uma fonte sustentável de energia capaz de contribuir para o cumprimento da meta de emissões zero da União Europeia, tornando-se elegível para financiamento sustentável “verde”.
A energia nuclear não emite gases durante a operação e tem uma pegada de carbono reduzida ao longo do seu ciclo de vida, sendo atualmente objeto de pesquisas. Novas aplicações estão a ser estudadas para avaliar a viabilidade da introdução de reatores nucleares no transporte marítimo. Assim, a energia nuclear para a navegação surge como um caminho que pode ser explorado para contribuir para a descarbonização do setor, mas apresenta uma série de desafios que precisam ser abordados primeiro, nomeadamente em relação à produção, segurança, proteção, formação, bem como ao regime de responsabilidade e seguros.”
Que navios podem melhor utilizar o nuclear
Os navios mercantes que parecem ser os melhores candidatos para a propulsão nuclear são aqueles que operam em rotas de longa distância, exigem grande autonomia e consomem grandes quantidades de combustível.
- Os ULCV – Ultra Large Container Vessels[iii] que transportam até 24.000 TEU, operam em rotas fixas entre continentes e necessitam de grandes quantidades de combustível, que pode ser substituído por energia nuclear, reduzindo drasticamente as emissões.
- Os VLCC (Very Large Crude Carrier) e ULCC (Ultra Large Crude Carrier) que transportam petróleo bruto, enquanto os VLOC (Very Large Ore Carrier) movimentam minério de ferro. Estes navios percorrem longas distâncias entre zonas de produção e centros de consumo, muitas vezes sem infraestrutura para combustíveis alternativos. Por exemplo, a Rota Brasil-China para minério de ferro, onde operam navios de 400.000 toneladas. Atualmente, não parece estar em perspetiva um combustível renovável viável para a propulsão de navios com essa capacidade.
- Navios de Gás Natural Liquefeito (LNG/LPG Carriers) que transportam cargas sensíveis à temperatura, como produtos perecíveis (frutas, carnes, peixes) ou gás natural liquefeito (LNG) e gás de petróleo liquefeito (LPG). Navios que necessitam de energia contínua para sistemas de refrigeração e pressurização.
- Navios para Águas Geladas (Quebra-gelos e Navios de Expedição Polar) que já utilizam propulsão nuclear, principalmente na Rússia, para manter rotas abertas no Ártico. Com a abertura da Rota do Mar do Norte, navios nucleares podem tornar-se essenciais para o transporte de mercadorias entre a Ásia e a Europa pelo Ártico.
A perceção pública e o medo histórico
A energia nuclear enfrenta não apenas desafios técnicos e económicos, mas também fortes barreiras sociais que dificultam a sua aceitação e implementação, especialmente em setores como o transporte marítimo.
Os acidentes como Chernobyl (1986) e Fukushima (2011) criaram uma imagem negativa da energia nuclear. No primeiro caso, ocorreram 31 mortes diretas oficiais e entre 4.000 a 90.000 mortes indiretas (estimativa discutível), e no segundo caso não ocorreram mortes diretas, mas entre 1.500 e 2.300 pessoas tiveram de ser evacuadas.
A energia nuclear é frequentemente associada à bomba atómica, Hiroshima e Nagasaki, e ao risco de proliferação nuclear. O uso das bombas atómicas em 1945 marcou profundamente a memória global. As explosões mataram instantaneamente dezenas de milhares de pessoas e causaram doenças e mutações genéticas devido à radiação, criando um medo persistente da energia nuclear.
A perceção pode ser alterada por meio de campanhas de informação que esclareçam os benefícios e desmistifiquem mitos. Serão destacadas as novas tecnologias (Pequenos Reatores Modulares – SMRs) com mais segurança e menor impacto ambiental. Algo que vai ser feito nos próximos 10 anos.
Estamos claramente em presença de uma corrida de fundo entre a energia nuclear e os combustíveis renováveis na descarbonização do transporte marítimo. Ambos os caminhos enfrentam desafios tecnológicos, regulatórios e financeiros, e o prazo de 10 anos parece ser o horizonte esperado para a maturidade de ambas as soluções.
[i] Ver em https://www.world-nuclear-news.org/articles/korean-smr-powered-container-ship-design-revealed
[ii] European Maritime Safety Agency (2024), Potential Use of Nuclear Power for Shipping, EMSA, Lisbon
[iii] Ver em https://market-insights.upply.com/en/nuclear-powered-container-shipping-under-study
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos
Excelente artigo. Obrigado pela informação transmitida.