São muito raros os artigos de análise dos mercados que são os mais relevantes para os operadores nacionais de transporte marítimo: as regiões insulares. Pelo contrário, escreve-se muito sobre o transporte marítimo internacional de contentores, em particular sobre os “cisnes negros”, as disrupções, os pontos de estrangulamento, o sobe e desce das taxas de frete, os mega navios porta contentores, etc..
Considero interessante uma visita às linhas regulares de contentores e carga geral que servem as Regiões Autónomas Portuguesas dos Açores e da Madeira, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe e que constituem o negócio central dos armadores Transinsular, GS Lines, Mutualista Açoreana e PSL Navegação.
As linhas marítimas regulares são fundamentais para a conectividade de uma região ou de um país e, consequentemente, para o seu desenvolvimento económico.
Espera-se que esse tipo de serviço facilite a exportação e importação de bens, proporcionando conexões diretas com mercados internacionais e reduzindo a dependência de intermediários no comércio. Além disso, a previsibilidade nos custos de transporte permitirá um planeamento mais eficiente para as empresas locais. Esses aspetos são fundamentais para aumentar a competitividade das empresas, favorecendo a sua integração nos mercados regional e global, além de transmitir aos investidores externos a confiança que advém de cadeias logísticas seguras e eficientes.
A comparação entre as quatro regiões insulares com base na população residente e no número de turistas permite perceber diferenças significativas.
Cabo Verde
O crescimento da população de Cabo Verde e a posição relevante que atingiu o setor de Turismo (peso de mais de 30% no PIB) justifica o entusiasmo que tem suscitado por parte dos operadores de linhas regulares.
Nas ligações internacionais atuam em Cabo Verde, para além da Transinsular e da GS Lines, mais dois operadores: a Boluda Shipping (das Canárias) e a Atlantic Shipping (dos EUA).
A GS Lines e a Boluda fazem ligações diretas a portos considerados centros de distribuição internacionais (hub) como são os casos de Las Palmas e Algeciras, que permitem uma boa conectividade internacional (os três operadores indicados também oferecem serviço feeder para a Maersk, a CMACGM e outros operadores globais).
Em 2027, Cabo Verde passará a ter ao seu dispor, em Ndayane, no Senegal, um novo hub regional, um terminal de contentores localizado 50 km a sul de Dakar e a menos de dois dias de viagem do porto da Praia; um terminal concessionado à Dubai Ports World (DPW) com capacidade para 1,2 milhões de TEU. A futura existência de ligações a esse hub poderá melhorar muito o acesso de Cabo Verde ao comércio marítimo internacional.
A Transinsular introduziu muito recentemente um segundo navio no tráfego com Cabo Verde a partir de Portugal. A GS Lines opera o serviço com dois navios de 1.577 TEU de capacidade nominal – 2,2 vezes superior à dos maiores navios a operar nos Açores e na Madeira.
…o exemplo de Cabo Verde vem demonstrar [que] a liberdade de acesso para oferta de serviços de transporte marítimo regular favorece a conetividade a portos internacionais que permitem fácil exportação e importação.
Assim, em termos de ligações marítimas internacionais, Cabo Verde está bem servido e tem perspetivas de em 2027 ficar ainda melhor.
Em paralelo, a Transinsular investiu em dois navios ro-pax (carga e passageiros) para operar no transporte inter-ilhas, no contexto de um Contrato de Concessão de Serviço (quatro navios) com o Governo de Cabo Verde, e organizou o que classifica como “um serviço integrado, servindo a população das ilhas com menos habitantes e menor atividade económica, alavancando a sua mobilidade, a possibilidade de colocação rápida e regular de produtos agrícolas ou manufaturados, bem como a facilidade de movimentação de turistas entre as diversas ilhas”. Um projeto que estimamos corresponder a um investimento total não inferior a 30 milhões de Euros.
Do ponto de vista logístico, é de destacar que nas ilhas de Sal e Boavista estão localizados 35 hotéis (mais de 26.000 camas) na sua generalidade pertencentes a cadeias internacionais e com o perfil “tudo incluído”. Cerca de 90% dos produtos consumidos nos hotéis são importados em contentores (entre os quais 3.500 TEU frigoríficos por ano), um navio da Transinsular e outro da Boluda escalam os portos de Palmeira e Sal-Rei com a regularidade necessária para garantir cadeias logísticas confiáveis.
Cabo Verde ambiciona captar investimentos para chegar aos 3,0 milhões de turistas em 2030.
Açores e Madeira
As duas Regiões Autónomas Portuguesas não têm qualquer ligação de linha regular com escala direta internacional. Na prática, toda o tráfego de linha regular tem de passar apenas por Lisboa e Leixões. Isto é assim desde que, em 1992, o Governo da República, o Governo Regional e a Comissão Europeia acordaram na criação de regulamentação que condicionou a oferta de serviços. Inicialmente eram 10 obrigações, entre elas a de efetuar ligações semanais entre os portos do continente e os de cada uma das Regiões Autónomas, a de estabelecer itinerários que garantam uma escala quinzenal em todas as ilhas, utilizar navios com tripulação exclusivamente constituída por marítimos nacionais ou comunitários e garantir a todos os tripulantes remunerações nunca inferiores às remunerações mínimas publicadas no Boletim do Trabalho e Emprego.
A regulamentação, em particular as obrigações de serviço público, foi escrita pela mão dos armadores Portugueses e foram os seus interesses que os legisladores quiseram defender. Algumas obrigações eram tão absurdas, contrárias aos interesses dos próprios armadores, que acabaram por cair com a publicação de alterações a alguns artigos da legislação nacional (como é o caso das duas últimas acima referidas).
A argumentação por parte dos armadores em defesa deste quadro regulamentar traduz-se numa inacreditável ameaça às populações: se a legislação permitir o livre acesso ao mercado, a cabotagem insular será o caos, as ilhas deixarão de ser abastecidas, os fretes subirão e haverá falhas de serviço (utilizam o termo sinistro de “perturbações graves”).
Na prática, o exemplo de Cabo Verde vem demonstrar exatamente o contrário: a liberdade de acesso para oferta de serviços de transporte marítimo regular favorece a conetividade a portos internacionais que permitem fácil exportação e importação.
Os interesses dos armadores Portugueses estão bem defendidos. Para a defesa dos interesses das duas Economias Regionais faltam atores políticos capazes.
O tráfego dos pequenitos
Na entrada e saída da Madeira, Açores e Cabo Verde circulam cerca de 250.000 TEU cheios (os que geram receita para os operadores), cerca de 400.000 cheios e vazios, com menos de 3,0 milhões de toneladas de carga. Um muito reduzido volume em termos internacionais.
São Tomé e Príncipe
A PSL Navegação serve o porto de São Tomé através de escalas com frequência mensal no sentido descendente, em rota para Luanda (Angola). Utiliza dois navios com capacidade nominal de 1.750 e 1.500 TEU. Total de contentores, embarcados e desembarcados no porto, cheios e vazios, inferior a 20.000 TEU.
Os navios dos armadores portugueses
Nos Açores e Madeira destacam-se: a idade média dos navios que é de 22 anos, com dois navios com cerca de 30 anos, e a capacidade média de carga nominal de 617 TEU (excluindo o “Margarethe” que opera no inter-ilhas).
Os navios a operar em Cabo Verde têm larga vantagem por serem de construção mais recente e terem capacidade que permite algumas economias de escala em relação aos utilizados na cabotagem insular Portuguesa.
A estratégia dos armadores nacionais
Em relação aos Açores e à Madeira a estratégia tem sido manter o “status quo” regulamentar e explorar os navios até ao limite do tecnicamente possível.
Foi o negócio do transporte marítimo na cabotagem insular (incluindo o da operação portuária regional) que permitiu à Transinsular, à GS Lines e à Mutualista Açoriana gerarem excedentes para crescerem e se tornarem em “Grupos”, como gostam de se autodenominar (por exemplo, participações no terminal de cruzeiros de Lisboa, no terminal de contentores da Sotagus, em diversos operadores logísticos e de transporte rodoviário).
As necessidades dos clientes do transporte marítimo é algo secundário para aqueles armadores naqueles dois mercados; a prioridade é controlar a cadeia logística do abastecimento e impedir a entrada de concorrentes. Por exemplo, a RA Açores tem investido muito no forte potencial do setor exportador (agricultura, pecuária e lacticínios), mas não encontra no transporte marítimo uma oferta de serviços com a qualidade necessária para permitir vingar no mercado internacional. As exportações dos Açores têm apresentado uma evolução modesta nos últimos anos.
As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira continuam a ter no transporte marítimo uma limitação ao seu desenvolvimento económico.
Em Cabo Verde, a Transinsular e a GS Lines tentaram, mas nunca conseguiram, impor a lógica das “obrigações de serviço público” nas ligações ao exterior. Prevalece o livre acesso. Os dois operadores têm de concorrer com terceiros e manter condições operacionais e de preço nos serviços feeder que desmotivem os operadores globais de escalar Cabo Verde com os seus próprios navios.
Cabo Verde tem hoje no transporte marítimo um fator de crescimento e de desenvolvimento económico.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos