por Fernando Grilo
É frequente dizer-se, e eu concordo, que os gestores públicos não são piores nem melhores que os gestores das empresas privadas. A situação concreta que descrevi em carta enviada ao Primeiro-Ministro no passado dia 22 de junho é infelizmente um caso em que gestores públicos atuam com total desprezo pelos utilizadores de um serviço público de transportes e se mostram desconhecedores das práticas de gestão mais básicas.
Sua Exª Senhor Primeiro Ministro,
É com grande preocupação que constatamos que a empresa que gere um serviço de transporte fluvial de passageiros com cerca de 20 milhões de passageiros transportados por ano está a ser tratada com grande desprezo pelo interesse público e pelas necessidades dos passageiros.
A Transtejo deve ser colocada a par de outras que em Nova Iorque, Vancouver, Hong-Kong, Singapura, Bergen ou Rio de Janeiro exercem uma atividade semelhante, mas que são orgulho das cidades que servem e que nelas apostam através de uma gestão em que o serviço público é o vetor principal.
Na maioria dessas cidades, os projetos de investimento em novos navios são suportados em estudos sobre o sistema de transporte (infraestrutura, operações, procura, alternativas técnicas para os navios, aspetos ambientais e estudos de viabilidade económica), estudos sobre o desenho dos navios (“concept design reports” que incluem as acomodações para os passageiros, os sistemas de propulsão alternativos, os requisitos de navegação e de segurança, etc.), estudos sobre a capacidade de transporte dos navios face a diferentes cenários de procura e estudos de engenharia naval que permitem efetuar um caderno de encargos completo e rigoroso e determinar os custos envolvidos em cada alternativa (por exemplo, dos sistemas de propulsão).
No Canadá e nos EUA podem ser encontrados estudos desse tipo, porque as empresas e as cidades têm por prática colocar disponíveis ao público todos os estudos que suportam investimentos públicos significativos. Afinal os estudos são pagos com o dinheiro dos contribuintes.
O Conselho de Administração da Transtejo faz exatamente o oposto. Anuncia planos de renovação da frota, mas não apresenta estudos que sustentem os investimentos. Para tal seria necessário reunir e coordenar equipas de diferentes especialidades (economistas de transportes, engenheiros de transportes, engenheiros navais, engenheiros de manutenção, etc.).
Há algum tempo a Dra. Marina Ferreira (Presidente do Conselho de Administração), numa audiência no Parlamento, argumentou que não encontrava esses recursos em Portugal. Uma avaliação errada, a PCA não se dirigiu às universidades e empresas nacionais para procurar esses recursos, limitou-se a encomendar análises superficiais a empresa sem as necessárias competências do ponto de vista de economia de transportes fluviais, de náutica e de engenharia naval.
Daqui resultou que em 15 de fevereiro de 2019 a Transtejo colocou a concurso a aquisição de navios com propulsão a Gás Natural Líquido e não conseguiu que um único estaleiro apresentasse proposta.
Estimamos o investimento total neste projeto num valor entre 80 e 90 milhões, o que excede largamente o valor da autorização de assunção de encargos que o Governo conferiu ao Conselho de Administração da Transtejo.
E o tempo passou, continuaram as avarias da frota obsoleta, as reclamações dos passageiros e dos trabalhadores da empresa sobre a qualidade do serviço.
Em 3 de fevereiro de 2020, cerca de um ano depois, a Transtejo lançou um novo concurso para aquisição de navios. Passados alguns dias a especificação e o caderno de encargos foram alterados porque alguém detetou que a velocidade e autonomia, respetivamente 18 nós e 80 minutos, eram incompatíveis com alguns dos restantes parâmetros. Assim, os valores passaram para 16 nós e 60 minutos. Em consequência, por exemplo, o tempo de viagem entre o Cais do Sodré e o Montijo será superior em 15 minutos comparativamente com a situação atual (de 20 minutos para 35 minutos).
A história é longa e tem muitos episódios cinzentos, mas a conclusão é muito simples: não possuindo os necessários estudos de procura de transporte, não aceitando as avaliações dos trabalhadores e gestores da empresa, a Dra. Marina Ferreira aprova uma nova especificação técnica dos navios desprezando por completo os interesses dos passageiros e também a sua segurança.
a) Da análise da especificação técnica conclui-se que a Transtejo planeia adquirir 10 navios de um protótipo. Não existe atualmente em operação de transporte de passageiros qualquer ferry 100% elétrico que reúna em simultâneo o comprimento, a capacidade em passageiros, a velocidade e a autonomia constantes dos parâmetros do concurso.
b) O preço de referência do concurso é de 57,0 milhões de euros, mas o valor total do investimento será sempre muito superior porque a especificação dos navios está muito incompleta.
c) Nos termos do concurso serão os concorrentes (estaleiros de construção naval) a estudar e a propor o sistema de propulsão elétrica, o sistema de baterias e o sistema das estações de carregamento. Mas não irão fornecer nem as baterias, nem as estações de carregamento e o seu preço não está incluído nos 57,0 milhões de euros.
d) No valor dos 57,0 milhões de euros também não está incluído o investimento nas ligações de corrente de terra (que não existem hoje junto aos cais com as capacidades necessárias) e na adaptação dos pontões ou, muito provavelmente, na aquisição de novos pontões.
Estimamos o investimento total neste projeto num valor entre 80 e 90 milhões, o que excede largamente o valor da autorização de assunção de encargos que o Governo conferiu ao Conselho de Administração da Transtejo.
Comparando esta gestão de um projeto pela Dra. Marina Ferreira com a prática atrás indicada para situações idênticas no Canadá e EUA conclui-se que pior é impossível.
Analisando os pedidos de retificação das peças do procedimento endereçados ao júri por alguns interessados, face ao elevado número de parâmetros em aberto (material de construção do casco, baterias e sistema de carregamento), e pelo facto de se tratar de uma aquisição de 10 unidades de um protótipo, concluo que é muito provável que este concurso acabe por ficar vazio como o anterior. Portugal será motivo de chacota no mercado internacional de construção naval.
O que lhe peço é que defenda o interesse público e não torne mais difícil a vida dos residentes na margem sul que trabalham na cidade de Lisboa.
A má gestão do plano de renovação da frota está a levar a empresa a um total descrédito, a afastar fornecedores de peso no mercado internacional, a afastar eventuais investidores privados e a atirar os passageiros para soluções de transporte individual, com prejuízos para o ambiente e a qualidade de vida de todos os cidadãos que residem na margem sul.
O que lhe peço é que exija com urgência à Dra. Marina Ferreira que divulgue, no website da empresa, todos os estudos e documentos que fundamentam o valor total do investimento no projeto, as especificações técnicas, as condições do caderno de encargos do concurso e as avaliações sobre as considerações de segurança da tecnologia de propulsão proposta. Para que os passageiros saibam quanto tempo vai demorar a sua futura viagem. Para que os contribuintes possam avaliar como vão ser gastos os seus impostos.
Antes de terminado prazo para apresentação de propostas ao concurso (27 de julho) deve ser parado o processo vergonhoso em curso e realizado um inquérito que apure a responsabilidade do Conselho de Administração da Transtejo
Em outubro de 2019, o seu Governo apresentou uma solução que consideramos válida para o transporte fluvial de passageiros na área metropolitana de Lisboa. Cito as declarações do Ministro do Ambiente:
“Estamos disponíveis para fazer mais esforços de descentralização. Entendo como a coisa mais natural do mundo que a Transtejo e a Soflusa sejam propriedade da empresa metropolitana de transportes de Lisboa ainda durante o próximo ano. (…) Todos os meios de transporte devem estar reunidos numa só empresa intermunicipal ou metropolitana para planear, gerir e fixar as obrigações de serviço público. (…) Na etapa seguinte, as autoridades metropolitanas e intermunicipais podem definir se o dono da empresa é publico, privado ou então o Estado central”.
A intervenção de S. Exa é urgente e imprescindível.
É necessário impedir que o Conselho de Administração coloque a Transtejo numa posição que a impede de ter um futuro. A má gestão do plano de renovação da frota está a levar a empresa a um total descrédito, a afastar fornecedores de peso no mercado internacional, a afastar eventuais investidores privados e a atirar os passageiros para soluções de transporte individual, com prejuízos para o ambiente e a qualidade de vida de todos os cidadãos que residem na margem sul.
Economista de Transportes Marítimos