Foi quase unânime a posição dos políticos e seus comentadores a favor das medidas contra a corrupção anunciadas pelo Governo no passado dia 20 de junho.
A que que reuniu mais consenso é a que refere a necessidade de TRANSPARÊNCIA nos negócios entre o Estado e privados e, em particular, a proposta de reforço da capacidade do Portal Base como “instrumento de escrutínio, disponibilizando informação detalhada, com tratamento de dados em massa e utilização de inteligência artificial”.
A aprovação de legislação e as alterações no Base podem demorar meses ou anos, mas as práticas das Empresas do Estado perante os seus fornecedores podem ser avaliadas mesmo antes de a IA entrar em ação.
A Transtejo – Transportes Tejo, S. A. (que detém 100% da Soflusa, Sociedade Fluvial de Transportes S.A.) é detentora de uma frota obsoleta, de mais de duas dezenas de navios, que necessita de intervenções de manutenção e reparação muito frequentes e que por isso mesmo deveriam ser cuidadosamente planeadas pelos seus serviços técnicos com ou sem recurso a contratos com prestadores de empresas especializadas de gestão técnica de navios. Os Conselhos de Administração, ao longo do tempo, tomaram decisões que levaram a que essa atividade seja hoje negócio para uma única empresa privada.
Em Portugal, o Decreto-Lei nº 198/98 de 10 de julho criou o enquadramento legal do Gestor de Navios. Gestor de navios é aquele que, contratualmente, é encarregado pelo armador da prática do conjunto ou de alguns dos atos jurídicos e materiais necessários para que o navio fique em condições de empreender viagem. As empresas que queiram exercer essa atividade têm de apresentar Requerimento de Inscrição junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I.P.). Estão inscritas 16 empresas, algumas são associadas de empresas armadoras, outras são apenas empresas de gestão de tripulações e não de gestão técnica de navios.
Nos concursos da Transtejo e sua afiliada Soflusa para a prestação de serviços de gestão técnica de navios concorriam há alguns anos três ou quatro empresas. Hoje, está na corrida apenas uma empresa pertencente ao Grupo ETE.
Por outro lado, nos concursos das duas empresas para ações de manutenção e reparação naval no estuário do Tejo concorriam há alguns anos cinco empresas (estaleiros navais). Até há dois anos concorriam duas, hoje a Transtejo recorre apenas a uma, empresa pertencente ao Grupo ETE.
Esta concentração decorreu de dois fatores: em primeiro lugar, o esforço comercial e de lóbi do Grupo ETE impondo a sua dimensão e capacidade financeira para afastar os concorrentes; em segundo lugar as práticas de contratação pública das Administrações da Transtejo.
Recomendo ao Sr. Ministro das Infraestruturas e Habitação uma auditoria sobre os últimos cinco anos, mas para se perceber a situação a que se chegou refiro apenas o passado recente.
Pelo Contrato n.º12/2024, em 1 de março de 2024, um mês antes da tomada de posse do XXIV Governo, a Transtejo outorgou a um CONSÓRCIO formado por duas empresas do Grupo ETE (uma de gestão técnica de navios e outra um estaleiro de reparação naval) um contrato tendo por objeto “serviços de manutenção global da sua frota”.
Em primeiro lugar, ao optar por englobar a gestão de navios e a manutenção e reparação num único contrato a Transtejo afastou a possibilidade de um estaleiro de reparação naval concorrer.
Em segundo lugar, esse contrato foi por decisão do CA suportado na Portaria nº786/2022 de 14 de novembro, outorgado POR AJUSTE DIRETO nos termos do artigo 24.º, n.º1, alínea c) do Código dos Contratos Públicos. Aquela alínea do CCP refere que se pode adotar o ajuste direto quando “Na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. O referido Contrato é para “serviços de manutenção”, tem um prazo máximo de dois meses, mas vigorará até 31 de dezembro de 2025, data em que o CA prevê (?) realizar um Concurso Público Internacional. Como é evidente, não existiu qualquer “motivo de urgência imperiosa” e a invocação do artigo 24.º n.º1, alínea c) é ilícita.
Em conclusão, na sequência de sucessivas decisões dos Conselhos de Administração da Transtejo, o Grupo ETE passou a dominar todo o negócio de estaleiro de manutenção e reparação. Como seria de esperar, a ETE não vai ao mercado procurar fornecedores, executa todos os trabalhos no seu próprio estaleiro de reparação naval.
Contrato com a Transtejo – Transportes Tejo, S.A.
Objeto de Contrato | Tipo de Procedimento | Entidade Adjudicatária | Preço | Data de celebração |
Proc. n.º 057/2024 – DJC/TTSL – Aquisição de serviços de manutenção global dos navios da frota | Ajuste Direto Regime Geral | Consórcio entre S&C – Gestão de Navios e Tripulações, Lda. e NAVALTAGUS – Reparação e Construção Naval, S.A. | 1,642.000 € (390.000 € da manutenção corrente pagos mensalmente e 1.200.000 € da manutenção extraordinária pagos anualmente). | 3 de março 2024 |
Contrato com a Soflusa – Sociedade Fluvial de Transportes, S.A.
Objeto | Procedimento | Entidade Adjudicatária | Preço | Data |
Proc. n.º 183/2023 – DJC/SL – Aquisição de serviços de manutenção global dos navios da frota | Ajuste Direto Regime Geral | Consórcio entre S&C – Gestão de Navios e Tripulações, Lda. e NAVALTAGUS – Reparação e Construção Naval, S.A. | 1.642.500 € da(390.000 € da manutenção corrente pagos mensalmente e 1.252.500 € da manutenção extraordinária pagos anualmente). | 28 de dezembro 2023 |
Os contratos permanecerão válidos até que “entre em vigor o novo contrato, que será formalizado após a conclusão do processo de Concurso Público Internacional para a adjudicação dos serviços de manutenção de navios, com vigência até 31 de dezembro de 2025”. Na prática, este prazo está sujeito a uma decisão de gestão do CA, que pode ou não ser tomada na data esperada, tornando-o, efetivamente, um prazo indefinido.
Acredito que a nova tutela da Transtejo, o Ministério das Infraestruturas e Habitação, vai quebrar este cenário dantesco montado durante anos sob a tutela do Ministério do Ambiente e vai procurar construir uma solução séria para a gestão do serviço público de transporte fluvial de passageiros no rio Tejo.
O Grupo ETE assumiu o controle de uma parte significativa das operações da Transtejo – Transportes Tejo, S.A., incluindo a gestão técnica, bem como os trabalhos de manutenção, reparação e docagem de navios. Este arranjo configura-se como um negócio rentista, no qual o fornecedor recebe uma renda fixa mensal e outra anual, assumindo pouco ou nenhum risco e sem responsabilidade pelas avarias ou falhas operacionais. Todos os utentes estão cientes de como estas questões afetam o serviço de transporte fluvial de passageiros no seu dia a dia.
Estas decisões do CA da Transtejo não são atos esporádicos. Não é necessário recurso a Inteligência Artificial para verificar no Portal Base que o CA utiliza a Adjudicação Direta como prática de contratação corrente. Em 2023 e 2024, mais de duas dezenas de contratos foram outorgados por ajuste direto com fundamento em “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.
Existem outros indícios de uma relação além do âmbito comercial entre o cliente e o fornecedor. Por exemplo, o atual Diretor de Manutenção da Transtejo ingressou na empresa há dois anos, tendo anteriormente ocupado uma posição na empresa de gestão de navios do Grupo ETE.
Também se observa que diversos contratos da Transtejo com fornecedores não estão registados no Portal Base. Um exemplo é o contrato de locação de veículos ligeiros em regime de aluguer operacional por quatro anos, de outubro 2023, para utilização pelos administradores, que supostamente teria sido realizado sem a devida autorização superior.
Sobre práticas semelhantes, o Tribunal de Contas já chamou a atenção da Transtejo no passado, mas de pouco serviu.
A AMT defende que Transtejo deve ter Concorrência
A Presidente da Autoridade da Mobilidade e Transportes defendeu no passado dia 26 de junho na Assembleia da República que o Serviço Público de Transporte Fluvial de Passageiros no rio Tejo devia ser “posto a concurso” e que a Transtejo – Transportes Tejo, S.A. teria de concorrer em pé de igualdade com empresas privadas.
Uma ideia “cândida” de alguém que, como ex-Ministra do Mar e responsável pelos portos, conhece muito bem o Grupo ETE. Nos últimos três anos, esta pessoa acompanhou de perto, na Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), os desenvolvimentos na Transtejo quando a empresa estava sob a tutela do Ministério do Ambiente.
Nova tutela, melhor tutela
Acredito que a nova tutela da Transtejo, o Ministério das Infraestruturas e Habitação, vai quebrar este cenário dantesco montado durante anos sob a tutela do Ministério do Ambiente e vai procurar construir uma solução séria para a gestão do serviço público de transporte fluvial de passageiros no rio Tejo.
Já não estou tão certo de que a nova tutela conseguirá mitigar as consequências de um dos processos menos transparentes e mais aberrantes que conheço no contexto de aquisição de navios por uma empresa pública: os navios 100% elétricos. Mas, eventualmente, teremos mais notícias sobre isso.
FERNANDO GRILO
Economista de transportes marítimos
Obrigado ao sr. Eng Dr Fernando Grilo sobre a sua analise sobre a corrupção nos governo do PS !…
Muita incorreção neste artigo de 7/3/2024. A partir de 1/1/2024 a Transtejo e a Soflusa fundiram-se (atual TTSL Transtejo Soflusa SA), a Soflusa não é atualmente detida coisa nenhuma pela Transtejo. Pelo que consigo ver no que no BASE e Plataforma de Contratação tem disponibilizo ao público, os contratos de manutenção com a S&C referem-se apenas aos navios classe Barreiro (antiga Soflusa) e não à antiga frota da Transtejo (que opera em Cacilhas, Seixal, Montijo, P Brandão e Trafaria)
A fusão foi anunciada pelo Governo anterior para o final de 2023. Não tenho nota de qualquer comunicação no website da empresa.
De facto os contratos mais recentes são com TTSL Transtejo Soflusa SA NIPC 500723770, mas no Portal Base a entidade adjudicante continua a ser TRANSTEJO – TRANSPORTES TEJO, S.A. (500723770).
Terá de facto tido lugar a fusão, não consigo confirmar. Só quando o Relatório e Contas de 2023 for disponibilizado.
A Transtejo mantém dois modelos de manutenção: interna (na frota da Transtejo) e subcontratada (na frota da Soflusa). Para já a fusão não alterou essa situação.
Reconheço as duas incorreções, mas elas não alteram o que se pretende demonstrar no conteúdo do artigo.