Nos últimos anos, o turismo ferroviário emergiu como peça-chave na promoção de um setor do turismo mais equilibrado e sustentável ao proporcionar conforto, segurança, frequência de serviços, intermodalidade e conectividade, características essenciais das viagens ferroviárias modernas e de um setor dos transportes do século XXI.
É evidente e já não é novidade que o turismo ferroviário tem a capacidade de promover um turismo mais equilibrado e amigo do ambiente, conectar áreas remotas, reutilizar o património industrial e cultural, bem como potenciar o desenvolvimento regional através de novas oportunidades e dinâmicas de negócio.
A indústria do turismo enfrenta desafios tendo em conta que, à medida que os impactos das alterações climáticas se tornam mais percetíveis e difíceis de ignorar, os cidadãos exigem cada vez mais opções de mobilidade sustentáveis e de baixas emissões de CO2. Prova disso é um Eurobarómetro (2021) da Comissão Europeia relacionado com o turismo, cujos resultados demonstram que 82% dos europeus estão dispostos a mudar os seus hábitos de viagem para práticas mais sustentáveis tais como consumir produtos locais, pagar mais para proteger o ambiente ou beneficiar as comunidades locais, e escolher modos de transporte mais ecológicos. E a necessidade de alterar hábitos e promover a mudança é ainda mais relevante dado que, segundo a Community of European Railway and Infrastructure Companies (CER), 75% das emissões de CO2 no turismo estão relacionadas com a rodovia.
A oportunidade de mudança de hábitos de mobilidade dada pelos europeus, associada aos objetivos de descarbonização da Europa, enfatiza ainda mais o papel da ferrovia como elemento-chave na transição para um turismo sustentável pelo facto de esta representar apenas 0,4% das emissões de CO2 e 1,8% no consumo energético por tipo de transporte tornando-se diferenciadora quando comparada com os sectores rodoviário (71,7% e 94%) e aéreo (13,4% e 2,3%). E um dos principais temas e preocupações da reunião do G7 do Turismo – o primeiro da história relacionado com o sector e que juntou no passado mês de novembro, na cidade italiana de Florença, altos representantes de Itália, Canadá, França, Alemanha, Japão, Reino Unido, EUA, bem como da União Europeia, OCDE, Organização Mundial do Turismo e representantes privados do sector – foi, sem surpresa, a promoção de uma mobilidade com reduzida pegada carbónica.
Deste modo e com o objetivo de promover o comboio como peça-chave para mais e melhor turismo, a iniciativa contou com uma viagem especial na região da Toscânia num dos comboios da FS Treni Turistici Italiani (TTI) – empresa criada em julho de 2023 e subsidiária da estatal italiana Gruppo Ferrovie dello Stato Italiane (Gruppo FS) que, juntamente com a Fondazione FS Italiane (Fundação dos Caminhos de Ferro Italianos) também ela pertencente ao Gruppo FS, têm como algumas das principais atividades a realização de viagens em comboios históricos e serviços especiais, bem como o desenvolvimento do turismo ferroviário italiano, a preservação, recuperação, promoção, rentabilização e uso do património ferroviário.
Foi também uma oportunidade para o grupo privado Arsenale apresentar as primeiras cinco carruagens de um dos mais recentes serviços ferroviários turísticos de luxo na Europa: o La Dolce Vita Orient Express. Com início em 2025, este projeto de 240 milhões de euros tem como propósito a valorização do turismo nacional e das regiões italianas, e visa a recuperação e adaptação de uma frota de 72 carruagens distribuída por seis comboios, com um total de 12 carruagens e capacidade para 62 passageiros por comboio. Este novo serviço carateriza-se por ser um cruzeiro sobre carris, apresentando-se também como um novo modelo de turismo ferroviário em Itália e uma novidade em relação à oferta existente. O La Dolce Vita Orient Express está a ser desenvolvido em colaboração com o Gruppo FS, através do operador ferroviário público Trenitalia, a Treni Turistici Italiani e a Fondazione FS Italiane.
Mas o turismo ferroviário vai muito mais além do que a simples forma de viajar de comboio. Os passageiros têm a oportunidade única de usufruir de cenários paisagísticos em constante mudança, permitindo uma maior apreciação dos lugares visitados independentemente de a viagem decorrer em comboios regulares ou em comboios históricos, com ou sem programas turísticos associados. Representa também uma oportunidade para conhecer outras regiões e localidades, contribuindo para aliviar a pressão sobre locais com fluxo turístico elevado, um dos grandes problemas da atualidade, distribuindo-o de forma mais uniforme entre diversos destinos, e promover a descoberta de regiões desconhecidas.
Os dados mais recentes da European Travel Commission, que referem que mais de metade dos europeus planeia explorar destinos menos conhecidos nos países que vão visitar, são uma excelente oportunidade para a ferrovia, com clara vantagem para os países europeus que têm tido o comboio no centro das suas políticas públicas de mobilidade e que, atualmente, têm ao seu dispor uma rede ferroviária densa e extensa, a servir todo ou grande parte do território.
Apostar e investir no turismo ferroviário contribui para potenciar um conjunto de benefícios socioeconómicos e de preservação do património paisagístico, industrial e cultural, quer dos territórios quer da própria ferrovia, com forte impacto regional e nacional.
Bons exemplos surgem, por exemplo, do Reino Unido, Itália e Suíça. O turismo ferroviário britânico dispõe, atualmente, de mais de 960 km de rede ferroviária afeta exclusivamente a diversos comboios históricos, cuja atividade representa um contributo para a economia britânica de 720 milhões de euros e a criação de 4.000 postos de trabalho diretos.
Em Itália, o trabalho desenvolvido pela Fundação dos Caminhos de Ferro Italianos desde a sua criação (2013) até aos dias de hoje, do qual se destaca a reabertura de mais de 1.000 km de linhas regionais encerradas para comboios históricos, a recuperação de material circulante e consequente expansão dos serviços turísticos pelo território italiano contribuiu para um impacto económico de 59,7 milhões de euros, entre 2014 e 2023, nas comunidades locais e a criação de novas oportunidades de negócio nas regiões.
Apostar e investir no turismo ferroviário contribui para potenciar um conjunto de benefícios socioeconómicos e de preservação do património paisagístico, industrial e cultural, quer dos territórios quer da própria ferrovia, com forte impacto regional e nacional.
Em 2023, foram transportados cerca de 118.000 passageiros e com o intuito de continuar a crescer estão a ser investidos 435 milhões de euros, provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência italiano não só para reabrir três linhas encerradas em 1986, 1994 e 2016, mas também na recuperação de mais comboios e na digitalização.
De salientar que a iniciativa pública estimula a privada dado que a Arsenale pretende, entre outras rotas, levar o comboio de luxo La Dolce Vita Orient Express à linha Sulmona – Carpinone, reaberta em 2014 pela Fondazione FS, três anos após o seu encerramento.
Na Suíça, a atividade do operador ferroviário regional Rhätische Bahn (RhB) tem forte impacto na economia e no emprego, uma vez que representa um valor agregado bruto de 910 milhões de euros, dos quais 79% dizem respeito à atividade ligada ao sector do turismo, contribuindo para a criação de 5.800 postos de trabalho, dos quais cerca de 4.600 dizem respeito a atividades turísticas relacionadas com o transporte ferroviário. A RhB gere uma rede ferroviária de via estreita com mais de 380 km de extensão, destacando-se as linhas de Bernina e Albula, classificadas em 2008 Património da Humanidade pela UNESCO e onde circulam, além dos célebres Bernina Express e Glacier Express, comboios regionais, de mercadorias e turísticos.
A existência de um turismo equilibrado e sustentável, assente no comboio, enfrenta diversos desafios tais como a incerteza da atual conjunta internacional, a concorrência dos transportes aéreo e rodoviário e, naturalmente, está dependente da visão, das políticas públicas nacionais e dos investimentos definidos para o sector dos transportes de cada um dos países europeus.
Mas para aumentar o destaque dos impactos positivos do turismo, a necessidade de investir em infraestruturas de transporte para beneficiar as comunidades locais é fundamental e foi, inclusive, um dos aspetos referenciados no G7 do Turismo. A modernização e intermodalidade dos serviços ferroviários são importantes e a necessidade de expandir as redes ferroviárias é determinante para chegar a mais áreas e localidades.
Deste modo, a reabertura de linhas desativadas pode também ser uma das soluções para dar escala ao transporte ferroviário. Aliás, reativar linhas ferroviárias regionais e/ou modernizá-las para o turismo é uma das orientações propostas pelo projeto europeu SMARTA-NET para uma maior mobilidade sustentável nas regiões de turismo rural.
À medida que o mundo caminha em direção a uma forma de turismo mais responsável e consciente, a ferrovia tem de estar pronta para desempenhar um papel crucial no presente e futuro desta indústria. Atualmente, iniciativas como o projeto TopRail, da União Internacional dos Caminhos de Ferro (UIC), ou os Rail Tourism Awards, da European Travel Commission e EUrail, destacam os benefícios ambientais e as experiências de viagem proporcionadas pelo comboio.
No entanto, e para que seja realizado todo o potencial do turismo sobre carris, além de investimentos a par da inovação e da digitalização, são necessários esforços colaborativos entre instituições ou organizações públicas, empresas do sector do turismo e comunidades locais de modo a superar e dar resposta aos desafios e garantir que o turismo ferroviário contribua significativamente para o cenário turístico global.
ANDRÉ PIRES
Professor