Começar a escrever algumas linhas, sem ter um tema vibrante em perspetiva, é algo perturbador para alguém que gosta de acrescentar qualquer coisa de novo ou suscitar alguma reflexão àqueles que despendem do seu tempo, sempre escasso, na leitura…
Sem a mestria do cantor e compositor, para quem “uma página em branco” é garantia de fonte de inspiração (talvez por não saber o que fazer caso tivesse uma guitarra na mão) decidi partilhar algumas reflexões sobre um tema batido. O NAL (fazendo referência à sigla, quase pareço um entendido, ou numa tradução literal, um experto).
Se há matéria em que não sou garantidamente especialista é em aeroportos, mas julgo existir uma linha de reflexão que, em mais de 50 anos, falta explorar adequadamente.
Foram feitos estudos e avaliações sobre os impactos económicos, geográficos e ambientais, mas pouco se fala sobre o impacto social e político (da polis) que uma estrutura como o “Novo” Aeroporto de Lisboa apresenta, ou pode apresentar, em especial se levar a um aumento do número de passageiros (razão maior que está subjacente à necessidade apresentada).
Há e haverá sempre quem possa ser beneficiado com qualquer que seja a solução, assim como há e haverá sempre quem venha a ser prejudicado, sendo a procura de equilíbrios algo que a natureza faz, mas que o ser humano tem tanta dificuldade em conseguir…
Não estaremos a ser levados pelo marketing daqueles que possam lucrar diretamente com o NAL, esquecendo, ou menorizando, os impactos na vida dos cidadãos da Grande Lisboa, por aumentar o stress numa cidade próxima do ponto de rutura social, cultural e de identidade?
Habituado a identificar perigos e avaliar riscos, por inerência da minha vida profissional (onde tudo pode ser perigoso ou pode ocultar perigos), tendo a olhar para além do óbvio para identificar eventuais vulnerabilidades e ameaças, sabendo que não há sistemas perfeitos e que há sempre algo que estará a escapar a quem concebeu o projeto ou solução.
Centrando a atenção em Lisboa e em Portugal, primeiros destinatários do futuro aeroporto (acho), pergunto-me:
Será isto que efetivamente queremos?
Um novo aeroporto é colocado como uma inevitabilidade que, de tão falada e “analisada”, poucos se atreverão a colocar em causa (excetuando, talvez, alguns ambientalistas por razões que poucos consideraram “racionais”).
Não estaremos a ser levados pelo marketing daqueles que possam lucrar diretamente com o NAL, esquecendo, ou menorizando, os impactos na vida dos cidadãos da Grande Lisboa, por aumentar o stress numa cidade próxima do ponto de rutura social, cultural e de identidade?
Não seria importante ver e analisar o que o turismo de massas tem provocado em algumas cidades, ao ponto de comprometer a sua sustentabilidade e habitabilidade?
Os nossos governantes, políticos e demais decisores deveriam andar mais a pé nas ruas de Lisboa (como vulgares cidadãos) para sentir o pulso à cidade, pois o seu coração está cansado e a sua individualidade e personalidade ameaçadas, correndo o risco de entrar em paragem cardiorrespiratória.
Gentrificação e desaculturação são palavras e maleitas que, quais substâncias tóxicas, circulam entre nós produzindo efeitos negativos e quiçá a morte acelerada dos povos, importando identificar os limites, doses e concentrações letais ou que possam causar danos agudos ou crónicos (longo prazo). Perdoem-me, mas tinha de colocar aqui alguns “ingredientes” terminologicamente perigosos.
Por princípio, para mim todos são bem-vindos, mas não estaremos a correr o risco de estar a frustrar as expectativas de quem nos visita ou de quem nos procura para aqui viver ou trabalhar, criando tensões (desnecessárias) com os que já cá residem (nacionais e/ou estrangeiros), dando o desconforto, frustração e sentido de injustiça origem a sintomas de xenofobia e racismo, matérias que, por excelência, são substâncias de que se alimentam os movimentos populistas?
A menos que um conjunto muito alargado de intervenções possa ser feito paralelamente (e que ninguém corre o risco de orçamentar), qual o stress que um volume muito maior de possíveis visitantes trará à cidade? Qual o impacto efetivo no comércio existente? E nos transportes públicos? Que consequências no mercado da habitação e arrendamento?
O aumento do turismo exerce pressão sobre a infraestrutura existente, incluindo o transporte público, as vias de comunicação, os sistemas de água, saneamento e energia, levando a congestionamentos e deterioração da qualidade de vida para os residentes locais e, por conseguinte, para quem nos visita.
Os nossos bairros históricos não são (ou não eram) apenas o seu edificado. São também as suas gentes, as suas vivências e tradições, e uma descaracterização acentuada levará inevitavelmente à sua extinção, perdendo-se a sua autenticidade cultural.
Olha-se para o NAL e outras infraestruturas, como o TGV, como se fossem a floresta, quando estas deveriam ser a árvore.
A estratégia nacional (e mundial) deveria focar-se na sustentabilidade, racionalização e otimização de recursos, sem esquecer o bem-estar. Mais do que fazer mais, importa fazer melhor.
Seguramente.
JOÃO CEZÍLIA
Especialista em transporte de mercadorias perigosas
Obrigado pelo artigo ao Sr. Eng. João Cezília